Como a Covid-19 afetou a dublagem de séries e filmes da TV e da Netflix
Com a quarentena, títulos novos já estreiam sem versão em português — enquanto profissionais autônomos da área ficam sem pagamento
Há quem considere assistir conteúdos dublados uma atitude quase criminosa. No outro extremo, os defensores do bom português garantem que a dublagem brasileira é uma das melhores do mundo, e torcem o nariz para as legendas. Há ainda muitos que não podem se dar ao luxo de escolher, caso de pessoas com deficiências visuais, idosos, analfabetos, ou crianças em fase de alfabetização, por exemplo. Este grupo vai enfrentar dificuldades nas próximas semanas. Com os principais estúdios de dublagem do país de portas fechadas, por causa da pandemia de coronavírus, não resta alternativa às plataformas de streamings e canais de TV além da exibição de novos títulos legendados.
O efeito da quarentena já foi sentido pela Netflix. O filme Coffee & Kareen, produção original que estreou no canal em 3 de abril, não possui a opção de áudio em português. Na página da comédia, um aviso atribui a falta da dublagem à segurança dos profissionais responsáveis. O filme foi a primeira produção da empresa a ser afetada. “Muitos estúdios de dublagem estão fechados devido à Covid-19, o que resulta em um atraso na dublagem de alguns de nossos novos títulos. Nossa prioridade é a saúde e a segurança de todos os envolvidos. Esperamos disponibilizar a opção de audio em português em breve e, enquanto isso, as legendas estarão disponíveis em todos os idiomas, como de costume”, informou o canal em comunicado.
Segundo Ana Lúcia Motta, CEO do grupo All Dubbing, os estúdios dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, as duas maiores praças de dublagem no país, estão paralisados desde março. “Não conseguimos finalizar os projetos que estavam em curso nem dar continuidade aos novos que estavam previstos”, conta ela, que presta serviço para gigantes do streaming, como o Prime Video, da Amazon, e a própria Netflix. Além da dublagem, a empresa também é responsável por legendas de algumas produções, atividade que segue sendo feita de maneira remota, e é uma alternativa para que títulos inéditos internacionais não deixem de chegar aos espectadores.
A preferência nacional pelo áudio em português é uma tendência notável. Em 2017, a Netflix analisou algumas de suas produções e concluiu que a dublagem deixa as legendas comendo poeira quando o comparativo são séries juvenis — naquele ano, apenas 16% dos espectadores optaram por assistir ao drama adolescente 13 Reasons Why legendado, contra 84% que aderiram ao áudio dublado. Já entre as séries adultas, a situação é equilibrada: em House Of Cards, a proporção é de 50% para cada. A preocupação, por enquanto, é especialmente com o conteúdo infantil. “É impossível que uma produção voltado ao público pré-escolar não seja dublada. Esses lançamentos serão adiados”, afirma Ana.
Além dos streamings, os canais de TV fechada também correspondem a uma fatia generosa da demanda dos estúdios. Mesmo antes da pandemia forçar o fechamento dos cinemas, os filmes exibidos nas telonas já eram lanterninhas na disputa. Presente tanto no streaming quanto na televisão, a HBO também terá mudanças na programação. Segundo comunicado enviado a VEJA, algumas produções originais do canal, que não foram especificadas, serão exibidas apenas legendadas. “Retomaremos a opção de som dublado o mais breve possível e agradecemos a compreensão”, informa a nota. O Sony foi outro que teve de se adaptar ao momento. Durante o mês de abril, o canal optou por colocar seu hit Grey’s Anatomy em um hiato provisório. Os episódios inéditos retornam em maio, com exibição exclusivamente legendada. Já no AXN, os novo episódios da série NCSI estão suspensos até 19 de maio.
Profissionais parados
Apesar de a falta de áudio em português ser uma questão incômoda, e até mesmo excludente no caso de pessoas com limitação de leitura, o espectador não é nem de longe o mais afetado pela interrupção nas dublagens. Há de se lembrar que milhares de profissionais tem a atividade como ganha pão, e enfrentam uma fase dramática. “A maioria dos profissionais do ramo não são registrados, a gente recebe por anéis dublados [um período de 20 segundos de vídeo]. Como estamos parados, não recebemos nada”, conta Roberto Garcia, que, entre muitos trabalhos, deu voz ao caranguejo Tamatoa na animação Moana: Um Mar de Aventuras.
Com o pico da pandemia previsto para maio e uma provável extensão da quarentena, a preocupação com a indefinição do retorno aumenta a cada dia. A alternativa seria levar a dublagem para dentro de casa — uma tarefa tecnicamente possível, mas cheia de pormenores. A principal preocupação é com a cadeia produtiva: além do dublador, participam da gravação um diretor e um técnico. Há ainda os profissionais do pré e pós-produção, que envolve a separação do texto, tradução e mixagem.
ASSINE VEJA
Clique e Assine“Quando você manda o material para a casa de um dublador com home studio, a gente se preocupa com o técnico e o diretor que ficam sem trabalho”, alerta Garcia, que conta que os estúdios estão estudando formas de montar uma estrutura em que os três profissionais participem da gravação, cada um em sua casa. “Isso é possível, mas a qualidade de áudio é um problema. Mesmo que a pessoa tenha um lugar isolado e o estúdio mande o microfone, cada ambiente dá a sua característica ao som. Também é necessário que haja uma qualidade de internet que nem todos os profissionais têm em casa, e muitas pessoas se preocupam que eles fiquem de fora. Mas nós estamos completamente parados e sem previsão de retorno, precisamos pensar em algo.” Com os prós e contras na mesa, a categoria ainda não chegou a uma conclusão sobre os próximos passos – de uma forma ou de outra, terão grandes desafios pela frente.