Na quarentena, Banksy espalha com força sua arte de crítica social afiada
Trata-se do prestigiado grafiteiro do Reino Unido, que todo mundo sabe quem é, mas ninguém nunca viu
Um confinamento rigoroso tem tudo para paralisar o trabalho de um artista que transformou muros e paredes de várias cidades na vitrine de suas obras, certo? Nem sempre: Banksy, o tão misterioso quanto subversivo grafiteiro britânico, está conseguindo ao mesmo tempo produzir novas obras de impacto e cumprir o malfadado isolamento social — ou supõe-se que esteja, já que ninguém conhece a cara dele. Sua obra mais recente traz o retrato de um negro ao lado de uma vela que começa a queimar a bandeira americana. “Não é problema deles, é meu”, escreveu na apresentação (dica imediatamente captada: Banksy é branco; ou não). Ele também rascunhou uma ideia de homenagem da cidade de Bristol aos manifestantes que lançaram no rio a estátua de um traficante de escravos. Ativista assumido, o artista não podia deixar de registrar a onda de protestos antirracismo que varre os Estados Unidos e outros países em decorrência da morte de negros nas mãos da polícia.
Antes, tratando da pandemia, o grafiteiro misterioso havia posto uma enfermeira na galeria dos super-heróis, na tela (meio que raramente usa) que mandou de presente ao Hospital Geral de Southampton, no sul do país. Exposto provisoriamente na entrada do hospital, o quadro será leiloado e a renda doada ao Sistema Nacional de Saúde. Tirando a pintura, a divulgação das novas obras não teve o risco e a emoção que costumam rondar o artista: ele postou uma foto de cada no Instagram, e o mundo todo viu. A onipresente rede social apresentou ao público seu próprio banheiro com nove ratos pintados em situações variadas de tédio na quarentena, com a legenda: “Minha mulher odeia que eu trabalhe em casa”. (Outra pista: Banksy é casado; ou não.)
De forma anônima, ele sempre comparece em momentos de comoção e de mobilização popular. Nunca foi flagrado por um celular. Apresentar ao mundo seus grafites poéticos e engajados sem ninguém ver o gesto é uma operação complicada. Ajuda no processo a cumplicidade dos fãs, que cultivam o glamour do mistério, e o grande número de grafiteiros em atividade. Banksy não usa tinta em spray, um processo demorado. O mais comum é preparar previamente os desenhos em estêncil ou silkscreen e, na calada da noite, aplicá-los em paredes ou muros. Supõe-se que conte com uma equipe de confiança tanto para grafitar quanto para montar as instalações que cria em ateliê — a bandeira pegando fogo é uma típica obra do gênero, que talvez ainda venha a ser exposta. A veracidade das obras é comprovada na sua movimentada página no Instagram e pela Pest Control, uma entidade que criou para comercializar instalações e reproduções autenticadas. Há quem compre o pedaço de parede onde aplicou sua obra. E há quem roube o precioso pedaço de imóvel: a polícia acaba de resgatar, na Itália, a porta dos fundos da boate parisiense Bataclan, palco de um trágico ataque terrorista, estampada com uma figura encapuzada e triste pintada por Banksy.
O mistério acerca de sua identidade vem do início da carreira de grafiteiro, nos anos 1990, quanto passou perto de ser preso por vandalismo. Acredita-se que more atualmente em Londres e que viaje com frequência, espalhando suas imagens inquietantes, meio sombrias e meio satíricas. “Bansky representa uma energia inexaurível e permanente de solidariedade, de inocência, de amor à causa dos oprimidos. A mensagem dele é muito bem planejada e elaborada”, diz Artur Matuck, professor de comunicação digital da ECA-USP.
Embora extraia altos benefícios financeiros do mercado, a relação de Bansky com a arte é tema de críticas recorrentes. Em 2013, ele passou um mês trabalhando sem jamais ser visto em Nova York e armou uma banca na calçada do Central Park, onde um senhor ficou quatro horas oferecendo originais assinados a 60 dólares. Depois contou a história em seu site, para alegria dos que aproveitaram a pechincha — um ano mais tarde, duas peças foram vendidas por 240 000 dólares. O ato de maior repercussão aconteceu no fim de 2018, quando a reprodução de uma de suas obras mais conhecidas, A Menina com Balão, foi vendida na Sotheby’s de Londres por 1 milhão de libras. Mal o martelo foi batido, um cortador acionado a distância picotou metade da tela em tiras — tudo planejado pelo próprio Banksy. “A intervenção-surpresa fez a história da arte se desenrolar diante dos olhos de quem estava no leilão. Foi a primeira vez, e a última, espero, que uma pintura se desfez ao atingir um preço recorde”, diz Emma Baker, especialista em arte contemporânea da Sotheby’s. O recorde seria rapidamente batido: a satírica tela Parlamento Involuído, com chimpanzés nas cadeiras de Westminster, alcançou 9,9 milhões de libras. Com o Reino Unido ensaiando a volta ao normal, o time Banksy está alvoroçado: logo, logo, acreditam os fãs, um grafite novo há de pintar por aí (ou não).
Publicado em VEJA de 24 de junho de 2020, edição nº 2692