Segundo Pulitzer de Whitehead mostra força dos autores negros americanos
Autor lidera movimento de escritores que desenterram o passado para expor o preconceito racial americano
Elwood é um polido adolescente negro em meio à segregação racial americana dos anos 60. Otimista, ele repete as frases de Martin Luther King como se fossem a Bíblia. Diante de tudo que lhe é oferecido, reage com arraigada obediência: “Preciso perguntar à minha avó”. Certo dia, o garoto pega carona em um carro roubado e é condenado por um crime que não cometeu. A intempérie é uma das muitas que lhe revelarão as dores do racismo. O fantasma que persegue o protagonista do romance O Reformatório Nickel é o mesmo que, na vida real, sempre assombrou seu autor, o nova-iorquino Colson Whitehead: o medo de ser vítima de um golpe do destino potencializado pela cor da pele. Criado em família de classe média alta, formado pela Harvard e hoje professor de Princeton, o escritor de 50 anos não enxerga na sua origem privilegiada uma armadura contra o preconceito. “Quando vejo uma viatura, imagino se não será o dia em que minha vida tomará outra direção”, disse à Time, expondo a opressão policial contra os negros nos Estados Unidos. Não à toa, a revista americana o alçou ao posto de narrador oficial dos dilemas raciais do país.
Raro exemplar de sucesso de público e de crítica, com vendas na casa do milhão, Whitehead reforça um consistente movimento de autores que não só se propõem a tirar a sujeira do racismo de debaixo do tapete como dão vazão a elementos da cultura africana vindos de antepassados escravizados e pouco iluminados pela literatura. São nomes como Ta-Nehisi Coates, Paul Beatty e a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie — que tem entre seus fãs a cantora Beyoncé. Todos trilham um caminho aberto em um passado não muito distante por Toni Morrison (1931-2019), a primeira mulher negra a vencer o Nobel da Literatura, e pelo valoroso James Baldwin (1924-1987), redescoberto pelo cinema em 2018 na adaptação de Se a Rua Beale Falasse. Whitehead se mostra a melhor combinação atual dos dois predecessores. Dono de uma narrativa furiosa, em que o realismo brutal se mistura a pitadas de fantasia, o autor transforma cenários e eventos reais do passado em palco de instigantes personagens fictícios que espelham o presente.
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Tal desenvoltura acaba de fazer dele o quarto nome a conquistar um segundo Pulitzer de ficção na história centenária do importante prêmio literário. O passaporte para a façanha foi o cortante O Reformatório Nickel (HarperCollins), ambientado em um internato para menores infratores, que foi lançado no país em 2019. O colégio foi inspirado em um reformatório real que funcionou na Flórida de 1900 a 2011, quando veio à luz que o lugar era um recinto de tortura mental e física, com um cemitério clandestino onde jaziam ossadas de jovens.
Não era intenção de Whitehead escrever sobre um tema tão pesado logo após The Underground Railroad: Os Caminhos para a Liberdade — livro sobre escravos fugitivos do século XIX que lhe deu o primeiro Pulitzer, em 2017. Ele garante, porém, não ter tido escolha. Se The Underground Railroad, seu sexto e mais aclamado romance, veio numa hora em que os liberais americanos celebravam a emergência das tramas sobre minorias — conquistando até o então presidente Barack Obama —, O Reformatório Nickel é fruto de um momento oposto. Com a eleição de Donald Trump e a retomada de movimentos supremacistas, Whitehead se viu obrigado a retornar a temáticas desagradáveis. A necessidade provou-se um teste: segurar o leitor apesar do enredo devastador é uma de suas qualidades. A dureza do reformatório e da política segregacionista na década em que a trama se passa ganha um retrato palatável graças à amizade dos protagonistas, o certinho Elwood e o astuto Turner, dois jovens negros à mercê de um mundo que os repele. A dupla luta para deixar o lugar de vítimas rumo ao de agentes da própria história.
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Linha parecida segue o jornalista Ta-Nehisi Coates, que divide o tempo entre ensaios sobre o racismo e as tramas de Pantera Negra nos quadrinhos da Marvel — no ano passado, ele lançou o primeiro romance, The Water Dancer (ainda sem tradução no Brasil), a respeito de um escravo que usa poderes sobrenaturais para fugir do senhorio. Na outra ponta, o ácido Paul Beatty fez barulho com O Vendido (Todavia), sobre um negro que tenta reinstaurar a segregação racial — a qual, segundo ele, nunca foi de fato bem desfeita. Já a pop Chimamanda apimenta a discussão do racismo com ponderações feministas. São poderosas palavras que, enfim, conquistam seu lugar ao sol.
Publicado em VEJA de 27 de maio de 2020, edição nº 2688
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