Tarcísio Meira: ‘A morte me assusta’
O ator, de 84 anos, explica por que continua trabalhando com a saúde debilitada e lamenta a falta de papéis na TV
Tarcísio Meira chega de cadeira de rodas ao Teatro Faap, em São Paulo, onde encena O Camareiro, peça do dramaturgo inglês Ronald Harwood. O espetáculo narra a relação entre um ator shakespeariano à beira da morte e seu camareiro. O personagem central ganha brilho na interpretação de Tarcísio, que tem a idade certa para viver o velho ator que vê com pesar a perda de amigos e reflete sobre a morte. Aos 84 anos, o artista paulistano faz parte da história da TV. Contratado pela Globo na década de 60, encarnou como poucos a figura do galã — belo, destemido e bom moço — em novelas como Irmãos Coragem (1970) e Coração Alado (1980). Na entrevista a seguir, Tarcísio fala da perda dos próprios companheiros, conta os segredos do casamento de mais de meio século com a atriz Glória Menezes e lamenta a falta de papéis nas novelas atuais: “Os autores não gostam de velhos”.
O senhor está de volta à ativa com uma peça que encenou pela primeira vez em 2015 — e na qual interpreta um grande ator na velhice, em conversas com seu camareiro. Por que, aos 84 anos, não abre mão de atuar? Artista não se aposenta. Quer trabalhar, enquanto houver trabalho para ele. Isso não tem idade: existe sempre a mesma vontade de fazer as coisas. Eu retomei a peça porque ela é belíssima, e achei uma pena não ter sido vista tanto quanto deveria, pois precisei encerrar a temporada em 2015, por causa de meus compromissos na televisão. Na minha idade, como encontrar outro personagem tão instigante?
No espetáculo, seu personagem é uma pessoa à beira da morte. A possibilidade de morrer o assusta? Sim, ela assusta. Ninguém gosta de pensar que o fim está chegando. Mas ele está chegando para mim. É triste também lidar com a perda dos amigos. Certa vez, fui receber um prêmio de cinema. Dei de cara com o diretor de teatro Antunes Filho. Foi uma alegria, porque fazia anos que não o via. Eu disse: “Antunes, somos sobreviventes”. Pouco tempo depois, o próprio Antunes morreu. A esta altura da vida, muitos colegas da minha idade se foram. Daqui a pouco, vou eu. Talvez eu deixe um vazio nas pessoas.
O senhor sai do seu espetáculo teatral de cadeira de rodas. A saúde ainda preocupa? Chego ao palco de cadeira de rodas também. Tempos atrás, arrebentei o menisco e fui operado três vezes. Sempre me ofereceram colocar uma prótese, e eu recusei. Agora, venho me apresentando num teatro com muitas rampas. Achei mais cômodo usar uma cadeira de rodas. Talvez fosse mais educado atender o público de pé. Mas, me perdoem, estou cansado demais para isso.
Antes de a peça estrear, o senhor estava internado. Foi, rapaz. Fiquei onze dias no hospital com uma pneumonia braba, e tivemos de adiar a estreia em duas semanas. Passei meu último aniversário, em outubro, também internado. Ganhei festinha, bolo, os médicos e os enfermeiros cantaram Parabéns para mim. Nos dois últimos anos, tive duas gripes fortes que atacaram meus pulmões.
“A morte me assusta. Ninguém gosta de pensar que o fim está chegando. É triste também lidar com a perda dos amigos. Daqui a pouco, vou eu. Talvez deixe um vazio nas pessoas”
Por que é cada vez mais raro ver o senhor e sua mulher, Glória Menezes, nas novelas da Globo? Os autores não acreditam que existam velhos na família brasileira, nem que eles tenham papel relevante. Sabe como é, são jovens autores, que se preocupam com os jovens. O que eles deveriam saber é que hoje são as pessoas de idade que passam mais tempo na frente da televisão assistindo às novelas. E essas pessoas sempre acompanharam minha carreira e a da Glória.
Nos últimos tempos, a Globo vem reduzindo drasticamente os contratos de longa duração com suas estrelas. O senhor e Glória continuam sendo funcionários da emissora? Sim, somos. Não sabemos por quanto tempo. Os contratos vencem em breve. Creio que devem terminar por esses dias.
Qual a importância da TV em sua trajetória? Sou louco pela televisão. Quando entrei na TV, o artista brasileiro só era conhecido por uma elite que frequentava o teatro. Uma elite que não era formada por muitas pessoas, mas suficiente para manter o teatro funcionando. O artista tinha a preocupação de fazer um espetáculo popular, mas não ganhava o bastante para se manter. Eu mesmo trabalhei no fórum de São Paulo como escrevente. Com o advento da teledramaturgia, o ator brasileiro finalmente chegou ao povo como ele queria: a novela revelou-se uma forma de fazer um teatro popular de fato.
Para um ator, não é sempre mais prazeroso fazer teatro do que novela? Eu adoro novela. Marcello Mastroianni dizia que nós, artistas dos folhetins brasileiros, somos os únicos que vivemos papéis que estão em construção em tempo real. Em nenhum outro lugar existem novelas como as do Brasil. No México até existe, mas eles usam ponto para gravar. Aqui, não. O ator realmente participa da vida do personagem. O autor escreve a novela de um jeito, o diretor entende talvez uma coisinha diferente e a gente faz ainda mais diferente, porque trazemos na memória a atuação nas cenas anteriores. A gente ajuda a escrever a história do personagem, não somos meros repetidores de palavras em cena. Mas é claro que alguns autores não gostam quando mexemos no texto.
Já teve problemas com algum noveleiro por causa de mudanças assim? Nunca aconteceu comigo. Mas confesso que é difícil para mim decorar tantas palavras. Quando dá um branco, eu troco a palavra por algum sinônimo ou então decoro a ideia que o autor queria passar.
O senhor nunca pensou em seguir o exemplo de sua mulher, que tem aulas de memorização? Preciso fazer, mas não faço. Não tenho tempo. Glória começou agora. Uma amiga fez, e ela achou bom fazer também. Glória e eu trabalhamos tanto que aprendemos a decorar na marra.
“Os autores de TV hoje não acreditam que existam velhos nas famílias brasileiras. O que eles deveriam saber é que são as pessoas de idade que passam mais tempo assistindo às novelas”
O meio teatral já discriminou o senhor por atuar na televisão? Não, porque eu estava no início da minha carreira quando comecei nas novelas. Não era um astro como Raul Cortez ou Sérgio Cardoso. E o Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, ex-chefão da Globo), que ajudou a fazer a história da TV no país, sempre teve o cuidado de chamar bons atores de teatro para as novelas. Ele sempre quis os melhores. Na verdade, tive mais problemas com o cinema do que com a televisão. Não deveria ter feito a metade dos filmes que fiz. Poderia ter sido melhor nisso. Mas não falarei sobre eles.
Rodrigo Cambará, seu antológico personagem na série O Tempo e o Vento (1985), ajudou a quebrar a imagem de eterno galã de novelas. Como foi encarar esse desafio? A Globo tinha uma autora de novelas maravilhosa chamada Janete Clair. E ela via os homens de suas tramas de uma maneira especial: eles tinham um tom másculo, épico, eram cheios de bravura. Eu só interpretava os personagens como o texto pedia, mas ganhei o apelido de galã, que sempre achei um tanto zombeteiro. O papel de Rodrigo Cambará ajudou a diminuir esse preconceito. Quando Boni me chamou para O Tempo e o Vento, eu tinha quase 50 anos. Acreditava que estava velho para o papel. Mas ele dizia: “Eu quero que você faça o Capitão Rodrigo”. Não sabia tocar violão nem cantar — atributos do personagem. Mas parece que deu certo.
O senhor está produzindo a peça O Camareiro sem o uso de leis de incentivo. Por que decidiu bancar o espetáculo do próprio bolso? Porque julgava que a peça tinha de ser feita. Eu possuía umas reservas e resolvi encarar essa. Não procurei as leis de incentivo porque está a maior confusão política sobre o tema, e não quis me sujeitar a essas coisas. Tudo bem, com certeza vou perder dinheiro. Mas terei colhido grandes prazeres e satisfações.
Qual sua opinião sobre as leis de incentivo? O incentivo veio e foi bem-vindo, porque existem pessoas que precisam de patrocínio para montar um espetáculo. Julgo importante que exista. Mas creio que se deva dar dinheiro às pessoas que realmente necessitem, não a quem consiga arcar com os custos de uma grande produção. Veja esses musicais que custam muito caro. Talvez seja melhor dar essa verba a outros projetos.
Recentemente, Roberto Alvim, presidente da Funarte, se referiu à atriz Fernanda Montenegro como uma pessoa “sórdida”. Como o senhor vê os ataques do governo Bolsonaro à arte e à cultura? Primeiro, eu diria que esse senhor não conhece Fernanda Montenegro. Porque ela é uma fada, jamais seria uma bruxa, muito menos sórdida. Se disse isso, é um sujeito indelicado e grosseiro. Segundo, não se pode coibir a arte. Jamais.
Certa vez, Glória Menezes declarou numa entrevista que, em nome do casamento, ela perdoou uma eventual escapulida do senhor. Como atravessar as turbulências num casamento tão longo? Ela não disse isso. Talvez você tenha interpretado assim.
Sim, ela disse. O casamento é entre mim e minha mulher. Isso não se explica nem se comenta. Um casamento é uma coisa muito particular. Eu amo minha mulher, e ela me ama também. Ao menos creio que seja assim, porque ela me aguenta há 56 anos. Um casamento feliz não se faz: ele simplesmente dura. Não somos os únicos, pois tem muita gente com um casamento mais estável que o nosso. Fora do meio artístico, é normal as pessoas ficarem casadas por tanto tempo.
Como foi a criação dos personagens cômicos das novelas A Guerra dos Sexos e Araponga? Esses trabalhos foram muito divertidos. Silvio de Abreu, autor de A Guerra do Sexos, é um grande amigo. No começo, senti uma certa dificuldade por nunca ter feito comédia na televisão. Não entendia o personagem, a mecânica dele com o tio e a tia, interpretados pelo Paulo Autran e pela Fernanda Montenegro. E eu amei Araponga. Imagine só, a Luiza Brunet estava no elenco. Apavorada, coitadinha, porque tinha de me beijar.
O senhor mora no 13º andar do número 1380 e seu porteiro diz “aperta o 13 e confirma” na hora de a visita subir ao seu apartamento. Foi de 13 nas eleições? Não nas últimas eleições. Mas já votei no Lula e convenci minha mulher a votar também. Hoje, está tudo muito confuso, as pessoas ficaram tão enraivecidas. Olha, ando com as duas pernas. Não posso caminhar com a direita sem a ajuda da esquerda, assim como não posso caminhar com a esquerda sem a ajuda da direita. O que estou vendo é que uma perna está brigando com a outra, e esse indivíduo, o Brasil, é capaz de soçobrar. Ora, apenas o saci anda com uma perna só, e, mesmo assim, de vez em quando pega carona com o vento.
Publicado em VEJA de 11 de dezembro de 2019, edição nº 2664