O sorriso torto e o olhar sedutor de Harrison Ford, aliados à lealdade de Rick Deckard à replicante Rachael, fizeram do herói de Blade Runner um dos mais cobiçados e perigosos das telas. Já o caçador de recompensas descrito por Philip K. Dick em Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, livro que deu origem ao filme de Ridley Scott, carece do sex appeal e da força de atração do personagem do cinema. No romance, Deckard é um homem casado e preocupado em exibir um status social bizarro em um mundo de valores pós-apocalíptico.
O enredo central, o ambiente futurista e a missão dada ao protagonista, de eliminar um grupo de androides Nexus 6, são os fios que unem livro e cinema. Fora isso, as obras apresentam mais diferenças que semelhanças. A distância faz de cada título uma obra única: cada uma pode ser saboreada separadamente e pode servir de complemento à outra.
Confira abaixo cinco pontos curiosos sobre livro e filme:
Status animal
Todos os dias, Rick Deckard cuida de sua ovelha no terraço do prédio onde mora. Aos olhares curiosos, se trata de um animal de verdade. Porém, o ruminante é uma réplica elétrica, feita para dar a Deckard e sua esposa o status social que só donos de bichos reais possuem. A premissa é estranha, mas faz sentido no livro. Animais verdadeiros são raros e caros no universo criado por Philip K. Dick no romance. Um avestruz, por exemplo, custa 30.000 dólares (em valores atualizados pela inflação, seria algo em torno de 200.000 dólares). O preço poderia ser parcelado em até 30 vezes com juros. Por replicante morto, Deckard ganha 1.000 dólares (7.000 dólares em valores atualizados). Em ambos os filmes, a ovelha de estimação é deixada de lado, mas animais falsos são uma constante da trama. Um dos melhores exemplos é a coruja de Rachael. No livro, Deckard quase cede a uma tentativa de suborno, pensando que a ave é verdadeira. Mas, como ressalta a obra, corujas foram os primeiros animais a serem extintos, antes do fim de todas as aves, que caíam do céu como uma praga bíblica.
Questão ecológica
No livro, partículas radioativas encobrem o sol, resultado da Guerra Mundial Terminus. A sensação claustrofóbica da poeira sufocante, que torna o ar quase irrespirável, é mais perceptível em Blade Runner 2049 do que no longa dos anos 1980. Contudo, nenhum dos dois filmes fala com tanta ênfase das feridas ambientais causadas pela guerra como o livro de K. Dick. O escritor carrega nas tintas ao relatar doenças provocadas pela poluição. Ainda mais interessante é a relação descrita por ele entre os humanos e os raros animais de verdade, que potencializa o velho amor entre pessoas e pets em um contexto de economia, sociedade e identidade individual em crise. Possuir um bicho real é sinal de empatia, medida que diferencia humanos de robôs.
Normais ou especiais
Os sobreviventes da guerra partiram para colônias extraterrestres. Nos filmes, a sensação que fica é de que emigraram do planeta as pessoas com melhores condições financeiras. As ruas de Los Angeles estão tomadas por imigrantes e se ouve pouco inglês entre os transeuntes. Sabe-se também que doentes foram barrados do êxodo futurista. No livro, a questão da saúde é acentuada. Os seres humanos estão divididos entre normais e especiais. Os normais são saudáveis, não foram atingidos mental e fisicamente pela poeira radioativa. Uma das precauções usadas pelos poucos normais que ainda não fizeram as malas é o protetor genital de chumbo, que os mantém férteis – os inférteis também estão presos à Terra. “Emigre ou degenere! A escolha é sua”, gritam anúncios de TV do governo americano.
Teste para replicantes
No livro e no primeiro filme, os robôs humanoides são descobertos através do teste de empatia Voigt-Kampff. Na obra escrita, fios são conectados ao rosto do objeto de estudo, para que sua ruborização seja medida conforme a polícia faz perguntas de teor controverso – muitas delas sobre o trato de animais, como quando Deckard pergunta a Rachael o que ela faria se ganhasse uma carteira de couro, item proibido nesse mundo. O primeiro longa usa a medição de pupila como parte do teste. Já em 2049, Ryan Gosling dispõe de tecnologias mais avançadas, capazes de descobrir o número de série do androide na parte inferior do seu olho.
Emoções e religião
Dois interessantes detalhes deixados de lado pelos filmes são apresentados logo no começo da obra: a caixa de empatia e o mercerismo. A caixa Penfield é um sintetizador de ânimo, usado pelas pessoas (humanas, mesmo) para escolher qual será a emoção e a programação do dia. Deckard acorda e sintoniza o aparelho em “atitude profissional”. Sua esposa, Iran, prefere “depressão autoacusatória de seis horas”, opção controversa, já que o dono de uma Penfield pode ser feliz e esperançoso o tempo todo. Apesar de usar a empatia como uma medida para separar humanos de máquinas, a humanidade desse mundo distópico nunca foi tão apática. K. Dick também descreve uma religião chamada de mercerismo. Sempre que alguém passa por uma emoção, ela deve fazer uma fusão com Mercer, a entidade que governaria tudo como um deus, através da caixa de empatia. Ali, os sentimentos serão divididos entre os donos originais e outros merceritas. “Contanto que uma criatura experimentasse a alegria, a condição para todas as outras criaturas incluiria um fragmento dessa alegria”, prega a religião.