O texto a seguir faz parte da edição especial de VEJA em torno dos 200 anos da independência. A ideia é tratar as notícias como seriam publicadas naquela semana de 7 de setembro de 1822 – tudo o que viria a ocorrer depois, portanto, ainda não aconteceu. É um passeio histórico ao cotidiano de dois séculos atrás.
Há um enfant terrible na capital francesa do qual não se para de falar. É um dos mais interessantes artistas da atualidade. Foi descoberto no Salão de Paris, inaugurado em 24 de abril nas instalações do Museu do Louvre — e ainda aberto à visitação. Seu nome: Ferdinand Victor Eugène Delacroix. Tem apenas 24 anos e um temperamento dos diabos. Diz-se que, aos 5 anos de idade, já tinha quase se enforcado nas rédeas de um cavalo; envenenado pela ingestão de acetato de cobre; e asfixiado ao se engasgar com uma uva. A mãe, Victoire Oeben, era filha de uma ilustre família especializada em desenhar móveis para a casa real francesa. O pai, Charles, foi membro do governo revolucionário — chegou a ser nomeado ministro das Relações Exteriores — e um dos mais ardorosos defensores da execução de Luís XVI, em 1793. Há, contudo, um ruído que tira Delacroix do sério, uma história de alcova mal resolvida: ele seria filho bastardo de Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord, o onipresente diplomata parisiense, contumaz figura também debaixo de lençóis alheios.
A instabilidade no lar, entre Bordeaux e Paris, tende a justificar a fragilidade de Delacroix — suas crises de faringite são homéricas. Órfão de mãe, morta em 1814, ele zanza com pincéis, irrequieto como na infância e apaixonado como na adolescência, como quem lida com espadas e sabres. E aqui chegamos ao feito que o transformou em pequena lenda em tout Paris. O catálogo do Salão do Louvre lista nada mais, nada menos que 1 802 trabalhos. Uma única pintura, de Delacroix, ganhou notoriedade imediata: A Barca de Dante, ou Dante et Virgile aux Enfers, um óleo sobre lona de colossais 1,89 metro por 2,41 metros. A tela, inspirada no oitavo canto do Inferno, mostra o escritor Dante (de capuz vermelho) acompanhado por Virgílio (de manto), conduzidos pelo vigoroso remador Flégias, se aventurando nas águas intempestivas do pântano de Estige, em meio ao horror e ao medo. Almas condenadas se agarram à barca. As cores fortes e vivíssimas se contrapõem aos tons frios. Disse da obra Adolphe Thiers, um historiador com veleidades políticas: “A pincelada é grande e firme. Ele dispersa suas figuras, as agrupa, as reúne à vontade com a ousadia de Michelangelo e a riqueza de Rubens. Encontro nele uma força selvagem, ardente, mas natural, que cede seu esforço ao seu próprio impulso”. A anatomia das figuras parece mesmo beber de Michelangelo. Mas há ecos mais evidentes de Théodore Géricault, com quem dividiu assento na Escola de Belas Artes e que desabrochou antes do amigo. Delacroix conta que, ao ver A Balsa da Medusa pintada pelo companheiro, ficou tão, mas tão entusiasmado que, ao sair do estúdio, “corria como um louco, até chegar em casa”.
Acostumemo-nos, pois, com o jeito mercurial de Delacroix, que não poupa tintas. Elegante e divertido, ele pode ser também grosseiro e mal-humorado. Gosta, enfim, de viver como os personagens dos livros de seus amigos escritores do Romantismo, avessos às normas e à tradição acadêmica. Delacroix sonha imprimir nas telas — mesmo olhando para episódios da Antiguidade — o tom das letras de um certo Honoré de Balzac, de juvenis 23 anos, autor de um escandaloso romance, Vicaire des Ardennes, tirado de circulação há algumas semanas por revelar as aventuras amorosas de um padre, anátema inaceitável, mesmo em pleno século XIX. O que o autor de A Barca de Dante deseja mesmo é viver livremente — como se fosse ele a imagem da liberdade a guiar o povo. “Pintura é vida”, diz. “É a natureza passada para a alma sem intermediários, sem véus, sem regras convencionais. A música é vaga. A poesia é vaga. A escultura exige uma convenção. Mas a pintura, especialmente nas paisagens, é a própria realidade.” Delacroix tem tudo para crescer e aparecer, desde que cuide de saúde tão malsã. E quem sabe, um dia, suas telas deixem as paredes dos salões para alas mais nobres do Louvre. Ninguém acredita.
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2022, edição especial nº 2805