O texto a seguir faz parte da edição especial de VEJA em torno dos 200 anos da independência. A ideia é tratar as notícias como seriam publicadas naquela semana de 7 de setembro de 1822 – tudo o que viria a ocorrer depois, portanto, ainda não aconteceu. É um passeio histórico ao cotidiano de dois séculos atrás.
Quem te viu, quem te vê. A ingênua jovem Maria Leopoldina Carolina Josefa de Habsburgo, de apenas 20 anos, casada com dom Pedro por procuração em 1817, não reconheceria a mulher de 25 anos, hoje princesa regente interina do Brasil. Com poderes legais para governar o país enquanto o marido está em São Paulo, virou uma personalidade decisiva nos bastidores das tratativas políticas no Rio de Janeiro. A interinidade lhe foi concedida em 13 de agosto passado — logo antes de a comitiva do esposo partir para ares paulistanos. Leopoldina recebeu VEJA minutos antes de entrar em um dos salões do Paço Imperial para presidir o Conselho dos Procuradores-Gerais das Províncias do Brasil. Ao cabo do encontro, do qual participou o ministro dos Negócios do Império e Estrangeiros, José Bonifácio de Andrada e Silva, foi escrita uma carta a dom Pedro, que a recebeu de um ajudante de ordens à margem do Ipiranga, estimulando a separação de Portugal.
De olhos azuis-ardósia emoldurados por uma tez alvíssima, quase transparente, comum a tantas meninas-moças de origem europeia, ela parece uma veterana de guerra, afeita a declarações firmes e corajosas. Em português gramaticalmente perfeito, embora com algum charmoso sotaque, intercalado por palavras em alemão e outras em francês, Leopoldina tratou na entrevista a seguir, concedida com exclusividade a VEJA, da recente travessia do Brasil apartado de Portugal, da trágica morte do filho e — pela primeiríssima vez — das revelações à miúda de uma suposta crise no casamento, segredo de polichinelo nos corredores imperiais.
Depois da reunião do Conselho de Estado, a senhora mandou mensageiros ao encontro do príncipe em São Paulo. Se pudesse falar com dom Pedro agora, o que diria? O Brasil será em vossas mãos um grande país. O Brasil vos quer para seu monarca. Com o vosso apoio ou sem o vosso apoio, ele fará a sua separação. O pomo está maduro. Colhei-o já, senão apodrece. Ainda é tempo de ouvirdes o conselho de um sábio que conheceu todas as cortes da Europa, que, além de vosso ministro fiel, é o maior de vossos amigos. Ouvi o conselho de vosso ministro, se não quiserdes ouvir o de vossa amiga. Pedro, o momento é o mais importante de vossa vida. Tereis o apoio do Brasil inteiro e, contra a vontade do povo brasileiro, os soldados portugueses que aqui estão nada podem fazer.
Não mesmo? O povo e o Exército do Brasil são excelentes e fiéis súditos.
A independência de Portugal, que parece bem encaminhada, será uma travessia tranquila? O Brasil é grande demais, poderoso e, conhecendo sua força política, incapaz de ser colônia de uma Corte pequena, por isso custará ainda muitas lutas duras e sangrentas. E, como me parece, pelo que meu humilde entendimento permite, o ódio dos europeus contra o Brasil é tão grande que terminará com o extermínio dos primeiros.
“O Brasil é grande demais, poderoso e, conhecendo sua força política, incapaz de ser colônia de uma Corte pequena, por isso custará ainda muitas lutas sangrentas”
A senhora não parece muito otimista em relação aos próximos passos. O estado das coisas não é nada bonito, eu já não estou para sofrer maroteiras. Que se mande chamar lorde Cochrane (almirante Thomas Cochrane, chamado por Napoleão Bonaparte de “o lobo do mar”) para cá.
Desde 9 de janeiro, quando dom Pedro anunciou que ficaria no Brasil, no Dia do Fico, a separação da Coroa portuguesa se acelerou. Seu esposo está confiante? O príncipe está decidido, mas não tanto quanto eu desejaria. Os ministros vão ser substituídos por filhos do país que sejam capazes. O governo será administrado de um modo análogo ao dos Estados Unidos da América do Norte. Muito me tem custado alcançar isto tudo — só desejaria insuflar uma decisão mais firme.
Como o Brasil independente pode ser viável se há tantos problemas de caixa? Devido a uma administração sensata e adequada, as finanças nunca estiveram em melhor situação, e todos contribuem voluntariamente para as necessidades do país; dentro de poucos anos uma força naval poderosa estará pronta, sendo que o começo já está feito. Todas as províncias se unem, animadas pelo mesmo interesse, pelos mesmos anseios.
Mas não haverá grita das realezas europeias? A grandeza do Brasil é de supremo interesse para as potências europeias, especialmente do ponto de vista comercial, e o maior desejo das Cortes aqui reunidas é fechar contratos comercias com as possessões austríacas na Itália e estabelecer seu monopólio comercial em seus portos, o que seria extremamente vantajoso para minha querida pátria, pela riqueza extraordinária do Brasil em madeiras corantes e mercadorias coloniais.
Por que tanto empenho ao lado de José Bonifácio, a quem a senhora chama de “sábio”, pelo desligamento de Portugal? O Brasil é, sob todos os aspectos, um país tão maduro e importante que é incondicionalmente necessário mantê-lo. O Onipotente conduz tudo para o nosso bem e o bem comum vem antes do desejo individual, por mais intenso que seja.
A senhora nasceu na Áustria, veio da Europa para cá com a esperança de voltar e acabou ficando. Considera-se brasileira? Sempre permanecerei brasileira de coração, pois é o que determinam minhas obrigações como esposa, mãe e a gratidão a um povo honrado, que se dispôs, quando nos vimos abandonados por todas as potências, a ser nosso esteio, não temendo quaisquer sacrifícios ou perigos. Os verdadeiros brasileiros são cabeças boas e tranquilas.
Sente falta da Europa? Embora esteja muito feliz, o estilo de vida em que nunca se vai a teatro, nunca a uma festa em que as pessoas não sejam as mesmas de todos os dias, vai se tornando mortal para alguém acostumado a um pouco de distração, e até meu esposo reclama disso. O calor, o clima e a consequente preguiça não nos deixam ler nem escrever, por isso não seria nada mau rever a Europa após um tempo.
Do que mais tem saudade? Nossos bailes aqui são festas religiosas de sete, oito horas de duração, geralmente até meia-noite; nada de oração por aqui, porque só se tagarela e ri; confesso sinceramente que gostaria de valsar, pois amo de forma indizível a dança de meus compatriotas.
Diz-se que a senhora não gosta da comida brasileira… Confesso que não gosto dos pratos doces portugueses e permaneço fiel à boa cozinha alemã, e não à nossa descuidada cozinha vienense, onde os pratos são meio envenenados e por isso se tem diarreia constantemente.
Em cismar, sozinha, à noite, que alegrias encontra aqui que não existem lá? Aqui se veem centenas de colibris, papagaios, grandes araras… e urubus-reais voando, esses últimos muito raramente e apenas na Serra dos Órgãos. O que mais me impressionou foram os muitos, diferentes tons de pele dos nativos e seus rostos de traços tão feios. O Brasil é um verdadeiro paraíso, há uma incontável quantidade de plantas, arbustos e árvores, especialmente espécies de palmeiras que nunca havia visto nem em estufas. Estou colecionando pássaros.
A senhora nunca falou da morte de seu filho, João Carlos Pedro Leopoldo Borromeu de Bragança, em fevereiro passado, em decorrência da reação dos militares portugueses ao “Fico”. O que houve? Meu filho morreu de uma espécie de hepatite mal curada, no espaço de 28 horas; tudo foi culpa de nossa fuga forçada para Santa Cruz, que fica a 12 milhas de distância (ela fugia com o bebê, e já grávida de outro, das tropas portuguesas que se rebelaram em 9 de janeiro, o Dia do Fico). A pobre criança sofreu terrivelmente no calor de 98 graus (36 graus Celsius), que, pode-se dizer, foi a causa de seu fim precoce; estou sem condições de descrever meu padecimento, só a religião e a firme confiança no Onipotente, que dispõe de tudo para o bem do homem, conseguem me confortar e me acalmar um pouco, mas é preciso tempo.
“Começo a crer que se é muito mais feliz quando solteira. Agora só tenho preocupação e dissabores, que engulo em segredo, pois reclamar é ainda pior”
Há rumores de que a senhora atravessa dificuldades financeiras e de que teria pedido ajuda ao barão Wenzel de Mareschal (representante diplomático austríaco no Rio). Confirma? Gastos imprevistos, ordenados e pensões a famílias necessitadas e à criadagem que, infelizmente, põem toda a sua esperança em mim obrigaram-me a desembolsar a quantia de 24 000 florins.
A senhora tem esse dinheiro? Não posso pagar essa dívida, e ainda menos meu esposo; minha mesada não me é paga, ou, quando é, retém-na meu marido, de quem não posso arrancá-la, pois ele mesmo precisa dela.
Como é a vida de casada com o príncipe regente, sempre tão distante do Paço Real? Começo a crer que se é muito mais feliz quando solteira. Agora só tenho preocupação e dissabores, que engulo em segredo, pois reclamar é ainda pior. Infelizmente, vejo que não sou amada.
Ele é um bom marido? O caráter de meu marido é extremamente exaltado. Tudo que denote levemente liberdade lhe é odioso. Assim só posso continuar observando e ficar chorando em silêncio.
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2022, edição especial nº 2805