O espanto com o diorama em Paris, invenção que não é teatro e não é ópera
Quem apresentou a novidade foi um sujeito de quem não se para de falar: Louis- Jacques-Mandé Daguerre
O texto a seguir faz parte da edição especial de VEJA em torno dos 200 anos da independência. A ideia é tratar as notícias como seriam publicadas naquela semana de 7 de setembro de 1822 – tudo o que viria a ocorrer depois, portanto, ainda não aconteceu. É um passeio histórico ao cotidiano de dois séculos atrás.
Para quem anda aborrecido com a belezura de Paris, e flanar já não parece ser suficiente, eis aí uma novidade: o diorama. Antes, contudo, convém uma rápida pincelada etimológica. A expressão bebe do grego: “di” significa através; e “orama”, aquilo que é visto, uma cena. Um monumental diorama acaba de ser aberto na capital francesa, obra do pintor, cenógrafo, físico e inventor Louis-Jacques-Mandé Daguerre, de 34 anos, em parceria com o pintor Charles-Marie Bouton, de 41. O aparelho, instalado dentro de um teatro próximo à Ópera, tem produzido espanto genuíno, como se fosse um passe de ilusionismo.
Numa sala imensa, com capacidade para 350 pessoas, há uma tela de tecido com a pintura de paisagens invariavelmente campestres. Por meio de um jogo de luzes, que brotam de aberturas à frente ou atrás do pano, e também de tochas, o desenho parece estar animado — ora de modo sutil, ora de maneira dramática. São quinze minutos de um espetáculo jamais visto. O truque: em razão da intensidade luminosa e da dança dos feixes, parece haver algum movimento. Numa das sessões a que o enviado de VEJA teve acesso, via-se uma cena verdejante do Vale de Goldau, com chalés alpinos românticos à margem de um lago plácido. E então, de repente, o céu ficou plúmbeo, nuvens escuras apareceram e deu-se uma tempestade na cena original. “Ou là là! Qu’il est beau!” foi a frase mais ouvida. Bonito mesmo, apesar de um tanto incômodo, porque a vida não é assim. E é o caso de indagar: como reagiria o príncipe regente do Brasil, que tem crises epilépticas, diante de engrenagem tão agitada, a arte transformada em sabe-se lá o quê?
Daguerre, o criador do entretenimento, já não anda pelos bulevares sem ser abordado. Virou uma estrela em Paris — e, como não é tolo nem nada, já estuda abrir um diorama em Londres no ano que vem. Imparável, estudioso e genial, ele se aproximou de um inventor de Châlon-sur-Saône, Joseph Nicéphore Niepce. Como dois jovens adolescentes, andam debruçados numa série de experiências químicas e ópticas (e Daguerre, especialmente, parece deslumbrado com a fama). Pessoas próximas à dupla dizem estar desenvolvendo um método que permita colar uma imagem qualquer a um suporte metálico. É brincadeira pueril que não os levará a lugar nenhum — como se fosse agradável aos olhos esse tipo de recurso. Os dioramas já são inovadores o suficiente. Não falta muito para que um lunático saia por aí dizendo ser capaz de fazer um trem a vapor pintado numa parede, dentro de um recinto, entre quatro paredes, avançar na direção do público — como se fosse real. Em tempo de guerras, de tantos conflitos, não custa sonhar acordado, apesar do desconforto. O século XIX, que mal começou, será movimentado.
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2022, edição especial nº 2805