O texto a seguir faz parte da edição especial de VEJA em torno dos 200 anos da independência. A ideia é tratar as notícias como seriam publicadas naquela semana de 7 de setembro de 1822 – tudo o que viria a ocorrer depois, portanto, ainda não aconteceu. É um passeio histórico ao cotidiano de dois séculos atrás.
Faz tanto tempo que tomei ópio pela primeira vez que, se tivesse sido um acontecimento insignificante na minha vida, já teria esquecido a data. Mas acontecimentos decisivos não são para ser esquecidos, e a partir das circunstâncias a eles ligadas deve ter ocorrido durante o outono de 1804. Nessa época eu estava em Londres por curto tempo após ter ingressado na universidade. Meu primeiro contato com o ópio aconteceu da seguinte maneira: desde minha infância acostumei-me a lavar a cabeça em água fria pelo menos uma vez por dia. Tendo sido atacado repentinamente por uma dor de dentes, que logo atribuí a alguma nevralgia que a falta dessa prática havia causado, pulei da cama, enfiei a cabeça em uma bacia de água fria, e com os cabelos ainda molhados voltei a dormir.
Na manhã seguinte, como nem é preciso dizer, acordei com dores reumáticas excruciantes na cabeça e no rosto, das quais não tive o menor alívio durante vinte dias. No 21º dia, acho que deveria ser isso mesmo e creio que era um domingo, saí pelas ruas, mais para fugir, se possível, das minhas dores do que com um propósito determinado. Casualmente encontrei um conhecido da universidade que me recomendou o ópio. Ópio! O terrível agente de inimagináveis prazeres e dores.
Tinha ouvido falar dele como de maná e ambrosia, mas nada além disso. Que som sem significado era essa palavra naquele tempo, e que acordes sonoros ela faz soar agora em meu coração! Que vibrações de terremoto nas minhas lembranças felizes e tristes! Voltando à narrativa, sinto uma importância mística pelos detalhes ligados ao lugar, ao tempo e ao homem (se é que ele era um homem) que pela primeira vez me abriram o paraíso dos comedores de ópio.
Era uma tarde de domingo, chuvosa e desanimada. Há poucos espetáculos mais entediantes neste planeta do que um domingo chuvoso em Londres. Meu caminho de volta para casa deveria passar por Oxford Street, e perto do Pantheon vi uma farmácia aberta. O farmacêutico, ministro inconsciente dos prazeres celestiais, como em harmonia com o domingo chuvoso, parecia insípido e estúpido, exatamente como qualquer farmacêutico mortal esperaria parecer em um domingo. E quando pedi a tintura de ópio, serviu-me como qualquer outro homem teria feito. Além disso, devolveu-me meio pence em cobre como troco da minha moeda de 1 shilling, tirada de uma caixa de madeira. Contudo, apesar dessas indicações de cotidianidade, ele desde então passou a existir em minha mente como a visão beatífica de um farmacêutico imortal, mandado à terra especialmente para nos encontrarmos. Há coisas que confirmam minhas considerações sobre ele, pois quando voltei a Londres em seguida, tentei encontrá-lo perto do Pantheon e não consegui: a mim, que não sei seu nome (se é que ele tinha um), parecia-me que ele havia evaporado de Oxford Street mais do que se mudado de alguma forma natural.
O leitor pode pensar nele como possivelmente nada mais do que um farmacêutico sem paradeiro. Pode ser que assim seja, mas minha fé é maior: acredito que ele tenha desaparecido ou evaporado. Nenhuma das minhas lembranças mortais é superior àquela, como a hora, o lugar e a pessoa que me pôs em contato pela primeira vez com a droga celestial. (…) Os prazeres oferecidos pelo vinho são sempre crescentes e tendem a uma crise, depois da qual eles decaem. Quanto ao ópio, uma vez ingerido, seu efeito demora de oito a dez horas. O vinho rouba a autodeterminação e o ópio a revigora grandemente. (…) Havia encontrado uma panaceia para todos os males humanos: aqui estava o segredo da felicidade, sobre a qual os filósofos haviam discutido durante anos.
Tradução de Ibanez de Carvalho Filho
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2022, edição especial nº 2805