“A favela adotou o rugby”
Mauricio Draghi usa a modalidade para apoiar jovens que vivem com a pobreza e o crime em Paraisópolis
Eu tenho 45 anos e pratico rugby desde os 14. O esporte chegou aqui no Brasil junto com o futebol, há mais de um século, mas não se popularizou. Ficou na elite. Fui atleta da seleção brasileira juvenil e adulta e sempre paguei para jogar as competições mundo afora. Meus companheiros também tinham condições privilegiadas. Foi com a ideia de mudar essa realidade e oferecer os benefícios da modalidade a um público segregado que, em 2004, eu e um colega de clube, Fabricio Kobashi, resolvemos apresentar o rugby às crianças de Paraisópolis, uma das maiores favelas de São Paulo e do Brasil. Como morador do Morumbi, um bairro nobre na Zona Sul de São Paulo e vizinho de Paraisópolis, sempre tive um contato superficial com a comunidade, por meio de funcionários de casa ou da escola particular onde eu estudei. Então, fizemos um esforço para levar a seleção brasileira juvenil até um campo lá e montamos um museu em uma escola para apresentar esse esporte.
Esperávamos quarenta crianças, mas apareceram umas 100, além de um monte de mães interessadas na atividade, mesmo sem saber o que era aquilo. Foi uma iniciativa pontual que, já naquele dia, percebi que teria de se tornar continuada. Surgiu ali o Rugby para Todos. Começamos a ir duas vezes por semana. Chegávamos com licença (de criminosos que atuam na favela), pedíamos um cantinho no campo para quem mandava ali e sempre fomos bem recebidos. De cara, passamos a atender 150 alunos. Só que logo vimos que o projeto iria demandar mais recursos do que tínhamos e que teria de cumprir uma parte além da esportiva. Havia aluno que chegava com dor de cabeça porque não tinha comido. Outros não tinham tomado banho. Era possível constatar a carência de muitos, que recebiam na prática do esporte uma atenção que não tinham da família.
A aprendizagem para lidar com essas demandas foi acontecendo em paralelo com as aulas. No começo, eu levava bolo de banana que a mãe de um amigo fazia. Ao longo dos anos, desenvolvemos uma metodologia transdisciplinar para atender às necessidades dos mais jovens aos quase adultos. Com crianças até os 14 anos, atendemos a família, porque sabemos que, se não fizermos, a criança não vai. Então trabalhamos, ao lado do esporte, os pilares da alimentação, saúde e educação. Já com os maiores de 15 anos pesa mais a vontade própria, o que nos faz focar no encaminhamento para o mundo do trabalho e na gestão de carreira. Dezoito anos depois, viramos uma referência no esporte educacional do país. Temos vinte profissionais, dos quais oito são ex-alunos, entre nutricionistas, fisioterapeutas, comunicadores e outros. São 280 matriculados e inspiramos uma centena de iniciativas em comunidades por todo o país que se baseiam no ensino do rugby.
E tem o legado esportivo. Paraisópolis virou o local no Brasil com mais atletas de rugby por metro quadrado. Vinte jogadores que conheceram o esporte aqui já passaram pelas seleções brasileiras masculina e feminina, entre juvenil e adulta. Duas foram atletas olímpicas em Tóquio. Uma delas, Bianca Silva, é uma das melhores do mundo. Antes era eu, o branquinho de classe média, que falava aos alunos que o rugby me fez rodar o planeta. Hoje eles vêm que uma pessoa igual a eles conseguiu, e isso é gratificante. Somos um celeiro de craques tão grande que, em vez de mandar jogadores a outros clubes, montamos o nosso, Leões de Paraisópolis. No ano que vem, jogaremos na elite paulista. Ainda sobrevivemos aos trancos e barrancos, dependemos da Lei de Incentivo ao Esporte e temos o desafio de diversificar receitas. Na pandemia, achei que tudo morreria, mas só nos fortalecemos. Acredito que vamos seguir existindo porque temos um vínculo muito forte com nossos alunos.
Mauricio Draghi em depoimento dado a Diogo Magri
Publicado em VEJA de 12 de outubro de 2022, edição nº 2810