DOHA – Caminhar pelas charmosas ruas do Souk Waqif, o mercado antigo e coração cultural do Catar, durante a Copa do Mundo tem sido complicado em razão do excesso de torcedores, que festejam todos os dias, até altas horas da madrugada. Entre tantas pernas, volta e meia aparece algum bichano em busca de comida ou um mero carinho. Ao contrário do que ocorre no Brasil, os pedintes de quatro patas são sempre gatos, animais cultuados no Oriente Médio desde os tempos do profeta Maomé. Em Doha, também é comum cruzar por camelos e até falcões, outros animais venerados pelos árabes. Mas onde estão os cachorros?
Em 12 dias na capital catari, a reportagem de VEJA não avistou um único cão. O caso chama atenção e tem ligações culturais e religiosas, mas também levanta graves suspeitas. Na última Copa do Mundo, na Rússia, o sumiço de cães foi alvo de controvérsia e, de acordo com diversas reportagens da época, foi resultado de uma matança promovida pelo governo de Vladimir Putin para tirar vira-latas das ruas, sob a justificativa de que os animais de rua poderiam transmitir doenças ou atacar visitantes.
No Catar, enquanto torcedores se divertem tirando fotos com camelos e falcões — há no Souk um quarteirão inteiro dedicado às aves, com luxuoso hospital, museu e criadouro —, e alimentando gatos, associações de proteção aos animais, como a Paws Rescue Qatar e a Qatar Animal Rescue, denunciam o desaparecimento dos cachorros.
Sob anonimato, por sofrerem constantes ameaças, alguns ativistas toparam falar à reportagem. Segundo eles, o número de felinos também foi drasticamente reduzido. “Cães e gatos foram capturados pelo controle de pragas e pelo governo, mas seu destino não está claro”, diz um dos protetores de animais. Outra ativista conta que o Ministério do Meio Ambiente alega manter um centro de adoção chamado Al Mazrooha, mas que a maioria dos cães apreendidos nas ruas estão em uma instalação do governo na vila de Rawdat Al Faras, na cidade Al Khor, onde ocorreu a abertura do Mundial.
“Sabemos de centenas de cães levados pelo Ministério de outros resgates, mas não conseguimos encontrá-los. O governo nos disse no ano passado, em novembro, que tinham mais de 2.500 cães em Rawdat Al Faras, agora dizem que têm apenas algumas centenas”, diz. “Se estão vivos ou não, não conseguimos confirmar.”, completa.
Procurados por VEJA, o Ministério do Meio Ambiente e o Comitê Supremo de Entrega e Legado da Copa não retornaram as solicitações de explicação nos últimos dois dias.
Em julho, um massacre em Doha foi relatado pela AFP. Quatro homens armados com rifles de caça invadiram uma fábrica e mataram 29 cães, inclusive filhotes. Na época, o governo disse estar investigando o caso e a Sheika Al Mayassa bint Hamad Al Thani, irmã do governante do Catar, tratou o ataque como “inaceitável”.
Resistência a cães tem raízes religiosas
Cataris ouvidos por VEJA deixam claro que sempre houve menos cachorros do que gatos no país e que a maioria dos parques e locais públicos não aceitam a entrada dos pets. Uma das razões para isso tem, como quase tudo no Oriente Médio, uma forte influência religiosa. Segundo os textos de Abu Hurayrah, um dos mais famosos companheiros do profeta Maomé, o pai do Islamismo teria dito que “se um cachorro beber de um recipiente seu, purifique-o lavando-o sete vezes, sendo a primeira com terra”.
Daí teria surgido a percepção de que cachorros não eram animais limpos e puros, ao contrário dos felinos. O próprio Maomé era um notório adorador de gatos, sendo a fêmea preta e branca Muezza a sua favorita, enquanto Abu Hurayrah era conhecido como “Pai dos gatinhos”, tamanha a sua devoção pelo animal.
No Catar, portanto, o melhor amigo do homem é o gato, não o cachorro. Os grupos de apoio aos animais ouvidos por VEJA contaram que há, sim, cães de estimação no país, mas que a desinformação em relação aos animais ainda é um entrave para sua popularização.
“Há muita confusão sobre o tema. Estas citações a Abu Hurayrah, por exemplo, são contestadas por especialistas. O próprio Alcorão fala muito bem dos cães e os salukis fazem parte de nossa cultura há séculos. Essa ideia de ser um animal impuro é mais moderna”, explica um dos ativistas, citando o cachorro de corrida da raça saluki, o mais popular do Catar.
Ele, no entanto, diz que os cachorros têm sido apartados das ruas em razão da negatividade que os cerca. “Muitas pessoas pensam erroneamente que os cães são assassinos cruéis. Até hoje circulam fake news sobre cachorros matando rebanhos inteiros ou mordendo crianças. Há pessoas que não têm conhecimento e usam a religião e a cultura como desculpa, mas não são a maioria”, diz.