A camisa amarela com detalhes em verde, famosa mundialmente pelas conquistas dos craques que a vestiram, é um dos maiores símbolos da identidade nacional. Ironicamente, o uniforme que consagrou o escrete pentacampeão surgiu de uma superstição: a necessidade de aposentar o modelo branco, “amaldiçoado” pela derrota para o Uruguai na final de 1950, o chamado Maracanazo. Já são quase sete décadas de devoção à “amarelinha”, mas em 2022 o figurino do Brasil na Copa do Mundo ganhou novas cores e significados.
O fato de o Mundial do Catar ser o primeiro a ser realizado no fim do ano — começa em 20 de novembro —, para fugir do calor do verão no Oriente Médio, deu origem a outra novidade: o clima de aproximação do evento se confunde com a reta final da eleição presidencial mais tensa e polarizada da história democrática do país. Não há dúvidas de que a disputa entre Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) influencia na escassez de camisas do Brasil no mercado.
Os modelos titular e reserva foram lançados em agosto, com chamativas estampas de onça-pintada, animal que representaria a “garra brasileira”. Vendidos a 349 reais, eles se esgotaram rapidamente e sua reposição não vem atendendo à demanda. As camisas estão em falta tanto nas lojas físicas quanto nas virtuais em razão da procura acima das “expectativas mais otimistas”, alega a Nike, por meio da Fisia, distribuidora oficial da fornecedora americana no Brasil. “Nos dois primeiros dias, vendemos cerca de dez vezes mais camisas em comparação com 2018”, informa a marca, em nota na qual garante que novas remessas serão entregues nas próximas semanas. Mas onde entra a política nisso?
Pois bem, chamou a atenção o fato de o controverso modelo azul com detalhes em verde nas mangas ter se esgotado em menos de uma hora no site da Nike. O mesmo aconteceu com a camisa preta, de goleiro, lançada no fim de outubro, atendendo a um apelo dos fãs. O fenômeno foi visto como uma resposta de antibolsonaristas ao uso constante da camisa amarela por parte do atual presidente. Bolsonaro, lembre-se, incentiva que seus eleitores compareçam às urnas vestindo a camisa canarinho.
A tabelinha entre futebol e eleições ganhou força na última semana, depois que o ex-jogador Raí “fez o L” e discursou a favor de Lula durante a entrega de um prêmio em homenagem a seu irmão Sócrates na festa da Bola de Ouro, em Paris, e depois que Neymar quebrou uma espécie de pacto de silêncio da seleção de Tite para manifestar seu apoio a Bolsonaro. A Nike não abre maiores detalhes, mas diz que a histórica proporção de vendas (65% da camisa amarela ante 35% da azul) vem se mantendo. Uma fonte ligada à marca, no entanto, garante que o estoque de uniformes reservas teve de ser ampliado.
Se faltam camisas da Nike nas lojas, sobram alternativas mais baratas, não só as clássicas de camelôs e portas de estádio, mas também as chamadas “réplicas tailandesas”, acessíveis em e-commerces como a Shopee. São modelos praticamente idênticos aos originais, muitas vezes produzidos nas mesmas fábricas asiáticas, e que podem custar até quatro vezes menos. “A carga tributária eleva o preço do produto oficial e não há o devido combate ao fabricante ilegal”, diz Armênio Neto, executivo com passagem pelo marketing do Santos. “Os preços poderiam ser menores, mas dizer que esses valores estimulam a pirataria é culpar a vítima pelo crime.” Segundo o Fórum Nacional contra a Pirataria e Ilegalidade (FNCP), o Brasil deixa de lucrar cerca de 2 bilhões de reais por ano com a prática. Seja na política, seja na economia, a camisa da seleção, em suas mais variadas cores e preços, ajuda a traduzir o Brasil.
Publicado em VEJA de 2 de novembro de 2022, edição nº 2813