Jogadores para lá de trintões podem ser os grandes destaques da Copa
Tendência é resultado do avanço do modo de jogar futebol e da fisiologia do esporte
Dramático como um tango, Lionel Messi parecia um bicho acuado diante do pelotão de jornalistas ao deixar o vestiário depois da derrota da Argentina para a Arábia Saudita, na mãe de todas as zebras. “Estamos mortos”, disse, com voz quase inaudível. Em castelhano soou ainda mais legítimo. “Estamos muertos.” Ecoava, inadvertidamente, uma frase de Jorge Luis Borges (1899-1986), o maior dos escritores portenhos: “A morte é uma vida vivida. A vida é uma morte que vem”. A seleção alviceleste precisa agora vencer o México, no sábado 26, e depois a Polônia, na quarta-feira 30. A salvação, com a passagem para as oitavas de final, estará sempre nos pés do mágico canhoto — de quem os companheiros, antes do início de cada partida, se aproximam como quem pede a bênção, em ritual quase religioso.
Aos 35 anos, em sua quinta Copa do Mundo — um recorde para jogadores sul-americanos —, Messi leva um país nos ombros e lidera um pelotão internacional no Catar: a de craques com idade já avançada, em torno dos quais giram as equipes e os olhares globais. É inédito em Mundiais. Não há, em 2022, uma promessa imberbe como o Mbappé da Rússia, em 2018, que tinha apenas 19 anos e muita testosterona. A lista dos velhinhos, por assim dizer, é nobre. O português Cristiano Ronaldo tem 37 anos. O croata Luka Modric, idem — com o detalhe de ter anunciado, sem brincadeira, que pretende jogar até os 50. O polonês Lewandowski está com 34. O galês Gareth Bale bateu na idade de Cristo. Para quem gosta de futebol, é um bálsamo — todos eles tratam a bola com carinho e calma, como se a acariciassem, além de serem capazes de, dada a experiência, sair do fundo do poço das horas más (Lewandowski perdeu um pênalti na estreia, contra os mexicanos). A título de comparação, e ela ajuda a entender a grandeza da presença dos velhinhos: na Copa de 1970, Pelé tinha 29 anos, embora contasse a milenar sabedoria dos imortais.
A longevidade pode ser atribuída, em parte, no futebol, a uma revolução interessante: a mudança dos esquemas de jogo. Craques já veteranos não precisam correr muito, quem corre é a pelota — e não é raro vê-los parados, à espera do bote certeiro. Os treinadores organizam as equipes para facilitar o desempenho dos virtuosos maduros. Disse Messi: “Aprendi a ler melhor as partidas, a saber em que momento e em que porção do campo posso ser mais efetivo e decisivo”. É um balé geométrico, matemático — porque o futebol se resume a tomar decisões certas, na hora exata. A inteligência dos veteranos atrelada à idade alimenta a explosão de figuras como Mbappé, e nem é preciso sublinhar a permanente relevância da juventude. Mas deixar o tempo passar, e dele beber, é fundamental. O tenista Roger Federer, que parecia não suar nas quadras e batia na bolinha como se vestisse terno, costuma dizer que “esportistas limitados não têm problema de escolha”, e daí fica tudo menos complexo. Para os outros, os que estão fora da curva, é mais desafiador, e o desafio da maturidade vira espetáculo.
Por óbvio, a extensão da carreira no esporte — Federer e Serena Williams encerraram a deles com mais de 40 anos, e até recentemente estavam no topo — é fruto dos avanços exponenciais da medicina e da fisiologia. Os grandes nomes estão cercados de profissionais de diversas áreas de estudo do corpo e da mente humana: nutricionismo, fisioterapia, psicologia etc. “O conhecimento ampliou o desempenho dos atletas”, resume Warlindo Neto, o mais reputado especialista brasileiro em medicina do exercício e do esporte. “Hoje, não se trata de apenas treinar e treinar, muitas vezes é mais produtivo deixar uma atividade de lado de modo a tirar o máximo quando preciso.” Saúde é tudo — e não há mais espaço para personagens como Garrincha, que bebia; Maradona, mergulhado em drogas; ou Romário, que atravessava as noites de Barcelona como se não houvesse amanhã. Saltam aos olhos, ainda, os cuidados individualizados, porque as necessidades de uns são diferentes das de outros. Messi, Cristiano Ronaldo, Modric e Lewandowski, todos têm equipes próprias e muito bem pagas de acompanhamento.
A permanência de jogadores que estão aí há anos impõe uma reflexão hipotética fascinante. Pelé tinha 33 anos em 1974 — não disputou a Copa da Alemanha porque já se sentia incapaz de oferecer a forma física que costumava desfilar pelos gramados. O holandês Johan Cruyff não foi para a Argentina em 1978 — alegou um problema familiar atribuído a uma tentativa de sequestro da mulher e dos filhos, andava brigando com os patrocinadores, mas estava mesmo em declínio (fumava como chaminé, e não por acaso morreu de câncer). Seria extraordinário tê-los em Copas novamente — Pelé em sua quinta, Cruyff na segunda. Não foi assim, e ficou o gostinho de quero mais. Hoje, bem-cuidados, estariam nos gramados do Catar.
Contudo, como é a novidade que faz a civilização ir para a frente, espera-se que nas próximas três semanas brotem nomes inesperados (quem sabe, e fica aqui uma aposta, o meia inglês Jude Bellingham, do Borussia Dortmund, de apenas 19 anos). Caberia a ele, de qualquer modo, ouvir o conselho do dramaturgo e escritor Nelson Rodrigues (1912-1980): “Jovens, envelheçam”.
Publicado em VEJA de 30 de novembro de 2022, edição nº 2817