DOHA – O que seriam das oitavas de final da Copa do Mundo sem Lionel Messi? Haveria um vazio, um buraco, a tristeza pela ausência do maior jogador do nosso tempo – um craque que a idade moldou, a ponto de fazê-lo ainda mais extraordinário do que no início da carreira. Aos 35 anos, em sua última dança, o camisa 10 argentino é a comprovação de que futebol se joga com a cabeça, com inteligência. É um exercício de escolhas certas, na hora certa. É como xadrez, ensina Pep Guardiola. Assim foi na vitória por 2 a 0 contra a frágil Polônia, com momentos dramáticos, porque o gênio canhoto deve ser lido como O Jogo da Amarelinha de Cortázar, na ordem que bem se desejar, de trás para a frente, de frente para trás, pouco importa. E então, aos 36 minutos do primeiro tempo ele perdeu um pênalti. Em 1994, o italiano Roberto Baggio, outro fora de série, quase pôs a bola para fora do Orange Bowl, em Pasadena, nas penalidades contra o Brasil, e não teve tempo de se recuperar. Messi teve. Salvou-o o gol chorado e solitário do habilidoso meia Alexis Mac Allister, cujo nome parece ter sido extraído de um conto de Jorge Luís Borges, e o golaço de Julian Álvarez.
De resto, entre o susto do pênalti desperdiçado, um e outro gol, o que se viu foi Messi desfilar com e sem a bola, em igual proporção. Ele dá a impressão de estar alheio, não corre. Olha para baixo, parece encurvado. Finge estar fora dos lances. Mas não nos enganemos: é tudo jogo de cena, um jeito de corpo. Messi tem as partidas na cabeça, sabe onde estar e porque estar. É geometria, é matemática.
Parece, enfim, andar em campo, até o bote decisivo, e assim toca a vida nos gramados do Catar (mesmo em um tapete um tanto esburacado como o do estádio 974, palco da batalha que não houve contra Lewandowski). A estatística ampara essa deliciosa impressão para quem gosta do futebol bem jogado, sem chutões, sem voos atléticos. O site americano The Athletic fez um curioso levantamento. Messi foi quem mais andou em campo na partida de estreia contra a Arábia Saudita, na zebra das zebras, com a derrota por 2 a 1. Ele deu exatos 4 625 passos. Nenhum outro jogador caminhou tanto na primeira rodada, entre todos os que estão no Catar. O francês Antoine Griezmann, outro habilidoso comandante do meio de cancha, deu 4 446 passos na estreia contra a Austrália, 4 a 1 para a França. Não há ainda dados das outras partidas, mas é certo que Messi continuou andando, andando – o que não significa que seja menos letal, ao contrário.
Postado mais à frente, como um falso centroavante, ele tem o olhar periférico de uma águia. Mal comparando, a mudança de estilo atrelada aos anos de estrada são como a transição efetuada por Pelé na Copa de 1970 – o rei já não corria como antes, mas ditava o ritmo, punha a bola onde bem quisesse. Basta recordar o quarto gol do Brasil contra a Itália, na final, aquela bola suavemente tocada para o chute de Carlos Alberto. Pelé andava em campo.
Os fotógrafos que ficam à margem do campo, próximos portanto do calor da hora, notam o alheamento de Messi. Ricardo Corrêa, de VEJA e PLACAR, tem um blog interessante, uma ideia perspicaz, chamado A dois metros do campo. A 120 centímetros de distância das quatro linhas ele escreveu o seguinte, depois de registrar em fotos o desempenho do argentino contra o México: “Hoje eu fiquei preocupado com a Argentina. Já é um país com o maior número de psicanalistas per capita no mundo e perder pro México ou empatar, lotaria os divãs amanhã e talvez pelos próximos quatro anos. Mas, análise mesmo precisavam os colegas de Messi. Ele é meio apagadão, ok, mas ali embaixo me deu a sensação que eles ficam fingindo que ele não está no jogo. Fosse eu do mesmo time, pegava e e entregava pra ele todas. Se vira, muchacho! Você é gênio. Ao meu lado infiltrou-se um camarada da comissão técnica da Argentina e gritou umas oitocentas vezes, “pela izquierda, pela izquierda”, até ser expulso do pedaço. Mas pela izquierda não era onde estava o Messi, ele estava meio parado, pelo meio. Bom, no fim, tocaram uma bola assim como quem não quer nada e ele pimba, acertou o cantinho. Acho que era essa a tática. Faz de conta que ele não está e joga uma só pra ele que resolve. Resolveu!”
Ninguém aguenta mais a comparação entre o drama argentino no futebol com o tango, a tristeza que se dança. Uma vez mais, contudo, cabe imaginar Messi como quem baila em passos de um bandoneón: a salida, a caminada, o giro e o cierre. De modo reducionista, mas didático, o tango tem apenas três movimentos: o passo para o lado, o passo em frente e o passo atrás. Com esse repertório simples, mas decisivo, de infinitas possibilidades e bonito de se ver, Messi e a Argentina seguem em frente – a Austrália que se cuide. Os deuses do futebol, que não ligam para chavões, estão sorrindo. Pena ele não ter marcado contra a Polônia, mas e daí? Há mais Messi logo mais.