BUENOS AIRES – “Muchachos, Ahora nos volvimos a ilusionar, Quiero ganar la tercera, Quiero ser campeón mundial, Y al Diego, Desde el cielo lo podemos ver, Con Don Diego y con La Tota, Alentándolo a Lionel“. Os versos do hit que embala a torcida argentina no Catar — uma adaptação da música da banda La Mosca Tsé-Tsé, que diz que Diego Armando Maradona está no céu, ao lado dos pais, torcendo por Lionel Messi — , dão a medida do sentimento dos portenhos por seus dois maiores ídolos do futebol. Geniais craques canhotos que elevaram o nome do país, tão semelhantes na forma de jogar e tão distintos em personalidade. Desde que o craque nascido em Rosário e criado na Catalunha começou a despontar no Barcelona havia a expectativa sobre o surgimento de um “novo Messias”. Em um passeio por Buenos Aires, dias antes da final diante da Copa do Mundo diante da França, no próximo domingo 18, foi possível atestar: já não é mais heresia apontar Messi como maior do que Maradona. E, mais importante que isso, a inevitável comparação deixou de ser odiosa e ganhou ares de orgulho: para os argentinos, é um privilégio poder amá-los incondicionalmente.
A rixa que havia entre os dois ídolos jamais foi alimentada por eles. Apesar de ter nascido um ano depois de Maradona enfileirar ingleses, belgas e alemães e erguer a taça do mundo em 1986, e, portanto, não tê-lo visto no auge, Messi sempre apontou o camisa 10 como sua maior referência. Em quase todas as suas entrevistas, se refere a “El Diego” — assim mesmo, com o artigo masculino que não costuma ser usado em espanhol, como se falasse de uma entidade — com enorme respeito. A recíproca era verdadeira, pois Maradona também tecia elogios ao craque a quem dirigiu como técnico, na Copa de 2010. No entanto, desde que estreou na seleção em 2005, Messi convive com as comparações e com críticas por supostamente não ter o que sobrava em Diego: a rebeldia, o amor à camisa, o poder de decisão e, por que não, a argentinidade. Esta percepção já não existe mais.
O nome do atual camisa 10 está na boca de um povo eufórico com a possibilidade de erguer novamente a taça, 36 anos depois da glória de Maradona no México. Durante um trajeto do subte, como eles chamam o metrô, Christian Garcés, dono de uma pequena empresa, diz que o fim do jejum argentino de 28 anos sem taças, ao bater o Brasil no Maracanã em 2021, foi um divisor de águas. “Dá para acreditar que antes do título da Copa América grande parte da população não tinha apreço por um craque assim? Você vai achar que estou mentido, mas havia quem ainda o chamasse de catalão. Somos assim, muito passionais, e Diego era uma sombra.”O próprio torcedor do San Lorenzo admite já ter sido um crítico ferrenho de La Pulga, mas diz ter mudado de opinião mais cedo, na Copa do Mundo de 2014, quando os hermanos foram vice-campeões. “Ele foi genial, apesar de perdermos. E nas Copas Américas, sem ele, nem chegaríamos.”
Quem já esteve ao menos uma vez na capital federal argentina se acostumou a ver a figura de Maradona em cada esquina, em fotos, bandeiras, adesivos, estátuas, pinturas na parede e em qualquer tipo de souvenir para os turistas. Na Argentina, Diego é Diós, o mais imperfeito dos deuses, a ponto de existir uma Igreja Maradoniana, e a devoção ao gênio nascido no bairro de Villa Fiorito só fez crescer após sua morte, em 25 de novembro de 2020. Mas se Diego segue sendo um Deus, Messi passou a ser Jesus Cristo, garantem diversos argentinos, sem qualquer pudor de cometer uma heresia em um país predominantemente católico e que tem na figura de Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, outro motivo de orgulho. O pontífice bonaerense é a terceira figura mais exaltada do país, sobretudo nesta época de Copa, enquanto Messi e Maradona já rivalizam firme pelo topo.
Até pouco tempo atrás, soaria como outra heresia comparar Messi a Maradona, mas esta percepção mudou completamente no Mundial do Catar. Durante um evento organizado pelo Distrito Federal de Buenos Aires, na Plaza Seeber, onde todos os jogos do Mundial são transmitidos, Diego, de 36 anos (um dos milhares de batizados com esse nome por causa do camisa 10), fanático pela seleção e pelo River Plate, não teve muitas dúvidas. “Prefiro Messi. Por tudo que transmite, pelo seu amor à camisa. É verdade que estão próximos e são parecidos no estilo de jogar, mas Leo batalhou e agora merece o reconhecimento.” As primeiras respostas, colhidas na praça de Palermo, bairro nobre da cidade, tinham um padrão, a ponto de causar estranhamento pela alta vantagem do craque contemporâneo.
As respostas variam de acordo com a idade e classe social. Em La Paternal, bairro afastado da badalação turística e onde se localiza o Estádio Diego Armando Maradona, do Argentinos Juniors, primeiro clube de Dieguito, mal se via a figura de Messi. “Tierra de Diós”, foi a frase mais lida durante o passeio. Jaime Lerner, o guia do museu do estádio, reconhece a grandeza de Messi, mas se derrete mesmo pelo canhotinho que debutou aos 15 anos com a camisa vermelha e transformou a história do Bicho, como é chamado o Argentinos, e de toda uma nação. “Messi é ótimo, um excelente jogador. Mas Maradona é sangue, raça. Ele parava pessoas para virem ao estádio assistir, em uma época sem internet.”
Christian, aquele do metrô, tem a mesma faixa etária de Jaime, mas prefere Messi por razões que extrapolam as quatro linhas. “Maradona não era uma boa pessoa. É alguém que já se envolveu com duros problemas, com drogas e vivia em rebeldia. Foi um gênio e nos deu um Mundial, mas a pessoa não me agrada”, diz o microempresário, cujo viés político, de direita, também o afasta de Maradona. “Escolhemos muito mal os nossos ídolos. [Juan Domingo] Perón é o culpado pelo atraso desse país e o veneram. Também não gosto do papa Francisco, ele não valoriza o país, sem contar que ajudava os opositores ao governo militar”, disse Garcés. Enquanto Messi passa totalmente alheio a questões políticas, Maradona tinha Che Guevara tatuado, mantinha amizade com Fidel Castro, Evo Morales e Hugo Chávez e adorava participar do debate público em um país extremamente politizado.
Messi jamais será um rebelde como seu antecessor, mas nos últimos anos vem assumindo uma faceta mais “maradoniana”, o que aumenta ainda mais a sua popularidade junto a um povo que sempre cobrou dele uma maior identificação com a camisa e com o país. A frase ¿Qué mirás bobo?’ Andá para alla” (Está olhando o que, bobo? Vai para lá”, direcionada ao holandês Wout Weghorst, virou uma febre em todo o país. Está em canecas, roupas e na boca do povo, como o desabrochar de uma nova fase do ídolo.
Dramáticos e passionais como um tango de Carlos Gardel, os portenhos têm uma propensão a endeusar suas figuras mais importantes e, muitas vezes, confrontá-las. O debate sobre Messi e Maradona, no entanto, parece ter amadurecido. Os gênios da bola passaram a ser complementares, quase uma continuação do outro. Distintos, um leve como uma Quilmes gelada, o outro forte e amargo como um Fernet Cola, ambos motivo de orgulho para um povo que deposita todas as suas esperanças, em meio ao caos político e econômico, na vitória sobre a França em Lusail. A bola rola domingo, 18, a partir das 12h (de Brasília)