Meu filho e eu fomos atacados e vivemos momentos de terror em nossa segunda casa, que é o que a Vila Belmiro representa em nossa vida. Levo o Bruno ao estádio do Santos desde que ele nasceu, um hábito que nos une, que cultivamos juntos com intenso prazer. Mas aí veio aquele domingo, 7 de novembro, e sentimos na pele o peso da intolerância no futebol que às vezes vemos na TV. Fomos assistir à partida Santos e Palmeiras e, mesmo com a derrota do nosso time, estávamos bem. Eu e Bruno amamos o jogo acima de tudo, tanto assim que ele, santista roxo, é fã do Jailson, o goleiro palmeirense. E, como ficamos bem colados ao campo, sem que eu me desse conta o próprio Jailson se aproximou e presenteou o Bruninho com sua camisa, que meu filho guardou na mesma hora na mochila, com um sorriso cheio de emoção de orelha a orelha.
Quando olhei para trás, uma avalanche de torcedores santistas gritava, nos xingava e ameaçava dizendo que iam atear fogo na blusa. Bateram em mim ao mesmo tempo um pavor e uma impotência. Não tínhamos para onde fugir, já que estávamos cercados por uma multidão furiosa. Cuspiam na gente. Temi de verdade pela vida do meu filho e pela minha. Tudo aconteceu muito rápido. O Bruno nem sequer teve tempo para esboçar qualquer espécie de reação. Ficou estático, paralisado, mas vi o medo em seus olhos, e ele só falava, assustado: “Pai, pai!”. Felizmente, a Polícia Militar apareceu e nos escoltou para fora do estádio. No caminho de casa, tentei descontrair o ambiente, mas o clima estava pesado demais, especialmente para uma criança de 9 anos que nunca tinha experimentado nada parecido.
Dois dias depois, quando Bruninho postou um vídeo sozinho nas redes pedindo desculpas à torcida santista, tomei um susto gigante. Ele, ainda tão pequeno, teve a grandeza de reiterar que não queria ofender ninguém. “Não precisa xingar, eu devolvo a camisa”, disse, humilde, em 45 segundos de gravação. Em poucas horas o vídeo viralizou, recebemos centenas de mensagens e até gestos de solidariedade de Pelé e Neymar. Mas os intolerantes não se calaram: seguem chamando meu filho de verme nas redes. Brigas no estádio são comuns, já testemunhei várias. Nunca, porém, tinha visto algo assim com uma criança. Está difícil conversar com meu filho. Estou pensando em marcar um psicólogo, para ajudar. Bruninho ficou traumatizado. É terrível ouvi-lo perguntar se as pessoas vão bater nele na arquibancada. Por enquanto, descarto a possibilidade de voltarmos para o meio da torcida.
O Bruno sempre falou que seria jogador de futebol. Até mudei de emprego para conseguir estar presente nos seus treinos. Neste ano, ele fez teste para a equipe mirim do Santos e, em janeiro de 2022, se torna oficialmente jogador do time. Minha cabeça está processando até agora tudo o que aconteceu. Passei a questionar se vale a pena continuar estimulando meu filho a correr atrás do que quer diante da violência a que fomos submetidos. Temos de respeitar as diferenças. A vida inteira martelei isso na cabeça do Bruno: é um valor que deve estar acima de qualquer outro. Ele aprendeu tão bem esse princípio que não tem vergonha de demonstrar admiração por esportistas de outras equipes. O fanatismo está contaminando o mundo. Para mim, é a maior doença da humanidade. Se você pensa diferente, cuidado: podem querer te matar. Foi isso o que senti aquele dia na Vila Belmiro. Espero que esse caso sirva ao menos de exemplo do que não se pode fazer sob nenhuma hipótese. É fantástico quando torcedores rivais ficam lado a lado e se divertem. Aliás, apesar do desabafo que fez nas redes, Bruninho não devolveu a camisa do Jailson, que segue guardada em uma gaveta de seu quartinho.
Moisés Nascimento em depoimento dado a Duda Monteiro de Barros
Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2021, edição nº 2765