“Não vou deixar pra lá”, diz pioneira da narração de futebol sobre haters
Luciana Mariano conta por que resolveu contra-atacar nas redes
Quando comecei a narrar, em 1997, o ambiente era muito diferente. Naquela época, a pessoa, para me xingar, precisava mandar uma carta. Era tanto trabalho odiar alguém que não dava nem para sentir. Vivi outros tipos de preconceito durante a carreira, mas a relação com o público diretamente teve início de uns tempos para cá. Depois que voltei, em 2018, chegou a primeira safra de narradoras. E o movimento de ódio aumentou, o que passou a me incomodar muito. Sempre que começamos uma transmissão, na ESPN, subimos uma hashtag para que os fãs de esportes participem pelas redes sociais. A interação com eles é muito legal, porque vão comentando com a gente. Mas no meio disso tudo existem centenas de pessoas que entram para odiar.
O Luciano do Valle, que foi meu marido, me dizia uma coisa há 27 anos: ‘Você é a primeira mulher a narrar futebol na televisão no Brasil. Quando abrir o microfone, as pessoas não vão prestar atenção no jogo, elas vão prestar atenção em você. Porque está em um lugar diferente, porque você é mulher’. Na época, não entendi muito bem o que ele estava dizendo. Hoje, faz todo o sentido. Essas pessoas não prestam atenção no jogo, estão ali para procurar erros. Só para dar uma espécie de confirmação para elas mesmas que eu, que sou mulher, não deveria estar ali. Então, isso foi causando um desconforto. Uma atividade que me traz tanto prazer, que é narrar futebol, passou a me causar ansiedade. Precisei intensificar a terapia, porque toda vez que ia fazer um jogo, já ia com uma expectativa muito ruim: ‘Vão me xingar muito, vai ser ruim…’. E isso me desestabiliza durante a transmissão.
Eu nunca tive com quem falar, quem me compreendesse. Uma coisa é contar a minha experiência para um homem, um narrador. E outra coisa é contar minha experiência para outra narradora, que sabe qual é a minha realidade. Essas meninas chegaram e a gente começou a trocar ideias, uma coisa muito bonita. Foi quando descobri que elas estavam passando exatamente pela mesma coisa. Isso me doeu. Algumas pessoas dizem que sou muito sensível. Acho tendencioso, porque é um comentário machista. Ué, sou sensível mesmo. Como iniciei tudo isso, acho que tenho direito de ser sensível, depois de trinta anos de profissão e de ter suportado tudo o que passei.
Foi aí que pensei: ‘Preciso começar um movimento’. Se fui pioneira lá atrás, é minha responsabilidade não permitir que isso aconteça mais, nem comigo nem com as minhas colegas. Então, me juntei a algumas pessoas que conheço há muito tempo. São oito advogados e uma psicóloga. E começamos a entrar com os processos. São oito tipos de enquadramentos possíveis. Comecei meio silenciosamente, porque queria entender como funcionava, se ia dar certo. O que ouvia na maioria das vezes era: ‘Deixa isso pra lá, é só pessoal da internet falando besteira’. Mas não posso deixar pra lá. Isso ecoa na vida das minhas colegas, vai afetar a vida delas. No balanço atual, são 61 condenados, das 175 ações abertas. Houve apenas uma condenação com pagamento em espécie, não só das custas. Esse dinheiro serviu para pagar os advogados. A maior parte das condenações foi de serviços comunitários, com prestação em casas de mulheres que sofrem violência doméstica.
Valeu a pena voltar. Em 2018, me ligaram da ESPN para uma ação do Dia Internacional da Mulher. Era para narrar Leipzig contra Zenit pela Liga Europa. Depois da transmissão, saí da cabine e, quando cheguei à redação, fui aplaudida de pé. Eu me emociono só de lembrar. Tudo o que tinha escutado de ruim, que não servia para isso, que não ia funcionar, não era verdade. No fim, tinha dado certo. Foi muito legal.
Luciana Mariano em depoimento dado a Alessandro Giannini
Publicado em VEJA de 18 de maio de 2022, edição nº 2789