O peso do mundo nos ombros da seleção do Irã
Cobra-se dos jogadores do time islâmico reações em torno da ebulição do país. Até onde podem ir? Saberemos amanhã, no clássico geopolítico contra os EUA
DOHA – Na manhã de 4 de novembro de 1979, dez meses depois da revolução islâmica que levou ao poder o aiatolá Khomeini, uma passeata estudantil parou em frente ao prédio da embaixada dos Estados Unidos em Teerã, capital do Irã. O grupo protestava contra o exílio oferecido pelos americanos ao xá Reza Pahlevi, para tratamento de câncer. Não demorou para que a turba invadisse o edifício – e 500 estudantes ocuparam o lugar, onde havia 90 funcionários. Seis deles fugiram pelos fundos, pulando o muro – episódio contado em Argo, premiado com o Oscar de melhor filme em 2013. Os iranianos exigiam a extradição do xá. O presidente americano, o democrata Jimmy Carter, cancelou as importações de petróleo do país asiático e bloqueou 8 bilhões de dólares de fundos depositados em Wall Street. A pressão não surtiu o efeito desejado. No início de 1980, Carter ordenou a retomada da embaixada, mas fracassou, com a queda de três helicópteros e a morte de 8 militares. E pela primeira vez um presidente dos Estados Unidos não seria reeleito – feito depois bisado por Donald Trump.
Não há símbolo mais acabado daquele tempo do que as fotografias dos iranianos que protestavam em cima do edifício da embaixada dos Estados Unidos, em evidente euforia, e com a bandeira americana em chamas. A relação entre os dois países nunca mais seria a mesma – e nunca mais é nunca mais mesmo, porque até hoje andam com faca nos dentes. E os estandartes continuam a servir de símbolos do que se pretende dizer, como manifesto. O fogo de 1979 chegou às redes sociais, e quem “queima” bandeira, agora, são os Estados Unidos. Em postagem nas redes sociais, com uma imagem mostrando a classificação do Grupo B da Copa do Mundo, a federação de futebol americana retirou o emblema da República Islâmica do centro da bandeira, deixando apenas as cores, o verde, branco e vermelho. Os representantes do Irã no Catar pediram à Fifa a exclusão dos Estados Unidos da Copa, o que evidentemente não acontecerá. A alegação: desrespeito ao pendão. Os cartolas de Washington responderam com alguma desfaçatez: disseram ter subtraído o símbolo em “apoio às mulheres no Irã lutando por direitos humanos básicos”. Depois do ruído, a imagem foi retocada, mas a temperatura não diminuiu.
É nesse clima que Estados Unidos e Irã se enfrentarão nesta terça-feira, 29 de novembro, às 16h00 (horário de Brasília) no estádio Al Thumama. Os americanos precisam vencer – se empatarem ou perderem, dão adeus à Copa do Mundo. O Irã precisa vencer, ou então empatar e torcer para que o País de Gales não vença a Inglaterra. Se perder, cai fora. Nem mesmo o escritor Chris Terrio, premiado com o Oscar de melhor roteiro adaptado por Argo, seria capaz de construir tanto drama. Embora, é bom não esquecer, não passe de um jogo de futebol. Recorde-se que em 1998, na Copa da França, os dois times se enfrentaram, numa partida também memorável. O Irã venceu por 2 a 1 e eliminou os Estados Unidos. Os jogadores, antes do apito inicial, trocaram flâmulas e cumprimentos. Nas ruas de Teerã, então, multidões saíram às ruas para celebrar a vitória e o antiamericanismo, com bandeiras das estrelas e listras rasgadas e queimadas, o Tio Sam a arder, mas talvez já sem o combustível político de 1979.
É combustível que, agora no Catar, também foi diluído – apesar da guerra fria deflagrada pela bandeira sem o brasão islâmico. Na verdade, embora os Estados Unidos possam deixar o torneio de modo melancólico, a atenção global é com a equipe do Irã, ímã de protestos. Os jogadores da seleção dirigida pelo português Carlos Queiroz viraram heróis – ou vilãos, a depender do ponto de vista – da ebulição que grassa pelo país. Desde o início da competição, em todas as entrevistas coletivas a jornalistas, os atletas foram induzidos a dizer alguma coisa a respeito dos protestos que se espalham em diversas cidades iranianas. O motivo: o assassinato da jovem Mahsa Amini, de 22 anos, que havia sido detida por não usar o véu islâmico de forma adequada, com fios de cabelo à mostra. As autoridades afirmaram que ela morreu em razão de uma doença e não por ter sido espancada, informação torta que incendiou ainda mais o ânimo dos manifestantes. Embora nada tenham dito – “são apenas jogadores de futebol”, ressaltou Queiroz, mais de uma vez, à beira de um ataque de nervos – os jogadores tomaram uma atitude inédita e corajosa: não cantaram o hino nacional na partida de estreia contra a Inglaterra (derrota por 6 a 2). Nas arquibancadas do Khalifa International houve aplausos e vaias. VEJA flagrou uma discussão entre torcedores, como se fosse um refrega entre bolsonaristas e seus antagonistas. Um erguia um cartaz exigindo liberdade para as mulheres – outro pediu que o abaixasse. Em Teerã, houve reação semelhante. Muitos comemoraram os gols da Inglaterra, sim, da Inglaterra – outros choraram a derrota.
Assim os atletas do Irã entrarão em campo – como heróis que não podem ser. É esse o ambiente da partida. Quem mesmo disse que era só futebol? Eis a beleza de uma Copa do Mundo. Não cabe exagerar, e repetir Carlos Alberto Parreira – “o gol é apenas um detalhe” –, mas sim, no jogo que ecoa a recente trajetória da geopolítica entre oriente e ocidente, o choque de civilizações, a bola na rede pode ser secundária.