Não deve estar nada fácil a vida dos organizadores da Olimpíada de 2028, em Los Angeles. Os Jogos de Paris, do ponto de vista da costura do torneio com a cidade, levaram a barra para alturas inalcançáveis. Onde mais, no mundo, poderia haver uma cerimônia de abertura a percorrer a história de sangue e amor da civilização ocidental ao longo do Sena, à margem da Notre-Dame, do Louvre, para então culminar entre a Praça do Trocadéro e a Torre Eiffel? Um fanfarrão nas redes sociais chegou a propor uma nova modalidade de inauguração para a cidade californiana: entre os carros, no trânsito interminável, com paradas estratégicas entre caixões de concreto e ferro do Walmart e, vá lá, como pano de fundo, alguma estripulia da Pixar e da Disney a emoldurar as cenas — é provocação, claro, e ela desdenha de algumas das qualidades da metrópole do cinema.
A comparação, contudo, soa inevitável. Como repetir o drama teatral, de ópera, dos jogadores de esgrima a descer as escadarias do Grand Palais, joia da arquitetura da belle époque inaugurada para a Exposição Universal de 1900? O que dizer do espanto estético do vôlei de praia emoldurado pelo colosso do engenheiro Eiffel, um dos símbolos mais conhecidos do mundo, e que só pode ser posto na mesma prateleira do torneio disputado no Rio, em 2016, na areia de Copacabana? Em que lugar uma prova de ciclismo de estrada chegaria ao fim beijando as ruas do Quartier Latin, em alvoroço juvenil ao redor da placidez elegante do Jardin du Luxembourg? Bem, não custa lembrar, a título de ombreamento, da disputa carioca, entre o mar e a Floresta da Tijuca, há oito anos. Los Angeles, reafirme-se, terá problemas para fazer acontecer. Paris, como nunca antes, soube usar seus cartões-postais diante das câmeras de TV, ainda que nem tudo tenha sido perfeito, como o chão recoberto de lama, depois da chuva, ao redor da arena de judô no Champ de Mars (uau!) e de hipismo em Versalhes (ufa!).
Em Paris, de modo a evitar os clássicos elefantes brancos de uso escasso depois da euforia, como sempre acontece, uma única instalação saiu do zero, a Arena Porte de La Chapelle, que abrigou as provas de badminton e ginástica rítmica. Todos os outros espaços já existiam ou foram adaptados. A piscina de La Défense, quintal de Léon Marchand, foi construída em uma casa de espetáculos que abrigava também partidas de rúgbi — desmontada, será reinstalada em regiões pobres, como Sevran e Bagnolet, na comuna de Seine-Saint-Denis, próximo ao Stade de France — ao lado da Vila dos Atletas, cujos 3 000 apartamentos calorentos vão virar moradia popular. “A escolha de uma área aonde o dinheiro não chega tem o objetivo de colocá-la no mapa”, disse a VEJA a prefeita de Paris, Anne Hidalgo. A ver se a promessa de inclusão será realmente concretizada.
E lá vem aquela palavrinha chata, um tanto sem significado, de toda Olimpíada: o legado. Sim, haverá 25 quilômetros de novas linhas de metrô, alimentadas pela chance do evento, mas talvez brotassem mesmo sem os Jogos. Não há como escapar, contudo, dos anúncios em torno do Rio Sena, que já foi dado como “biologicamente morto”, tamanha era a quantidade de imundície que se concentrava ali. Com o impulso dos Jogos, foram reservados 1,4 bilhão de euros para torná-lo balneável, e o resultado é uma virada de página, ainda que o sistema posto de pé para mantê-lo limpo não seja infalível — como se viu nas duas últimas semanas, quando treinos e provas de triatlo foram adiados depois de temporais que acabaram por turvar as águas. A peça-chave é um megarreservatório capaz de armazenar o equivalente a vinte piscinas olímpicas, medida que, aliada à regularização em massa de ligações clandestinas, já promoveu uma reviravolta ao longo dos 776 quilômetros do célebre curso.
A qualidade melhorou consideravelmente, mas, quando chove demais, o supertanque não dá conta, e o aguaceiro se mistura ao esgoto, na falta de redes coletoras separadas. Aí é preciso esperar La Seine (como os franceses chamam, no feminino) voltar a ser própria para banho, coisa de uns dois dias, em média. O plano é que, em 2025, os parisienses, naturalmente céticos em relação ao novo status do mítico acidente geográfico natural, possam dar um mergulhinho por lá em alguns trechos, em praia que brotaria no cenário urbano. “O Sena limpo é a maior contribuição no caminho de fazer de Paris uma vitrine verde para o mundo”, diz Hidalgo, que se comprometeu a mergulhar no rio e assim fez. “La Seine já está melhor que o Rio Tâmisa, em Londres.”
A cerimônia de encerramento, com Tom Cruise como garoto-propaganda de Los Angeles, inaugura o novo ciclo e estabelece uma missão impossível. Porém, nunca se deve desdenhar da força dos americanos em promover espetáculos. Não por acaso, as provas de natação acontecerão numa piscina instalada em um estádio de futebol americano com capacidade para 80 000 pessoas. Começou a contagem regressiva — aliás, para o presidente da França, Emmanuel Macron, também. O parêntese olímpico está fechado, e agora ele terá de lidar com o rolo armado ao dissolver a Assembleia Nacional, com novo Parlamento, primeiro-ministro demissionário e sem nome novo no horizonte. A quem apelar, agora que a chama apagou e só será acesa em Los Angeles?
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2024, edição nº 2905