As lendas, embebidas pelo passar do tempo, ajudam a contar a história das civilizações — ou ao menos funcionam como atalho para entender as culturas, de modo a respeitá-las. Diz-se, de boca em boca, que a primeira pessoa a pegar uma onda na Praia de Teahupoo, na porção sudoeste do Taiti, coração da Polinésia Francesa, foi uma garota chamada Vehiatua, ou “culto de Deus”, no idioma autóctone. Era a única mulher entre tantos homens, que desconfiavam de sua coragem para enfrentar os colossais tubos de água salgada que ali nascem e morrem. O chefe de uma das aldeias da região, sentindo-se humilhado, matou a moça, na esperança de absorver seu talento a surfar no Pacífico Sul — ela depois seria vingada.
Teahupoo, ou “Tchopô”, como é chamada, é uma praia mítica para quem sobe em ondas. Temida e assustadora, faz parte do circuito mundial de surfe — entre os dias 11 e 20 de agosto, abrigará o décimo e penúltimo lote de baterias do torneio liderado pelo brasileiro Filipe Toledo. No ano que vem, no fim de julho e início de agosto, receberá as provas da modalidade da Olimpíada de Paris, a 15 000 quilômetros de distância — a Polinésia Francesa é um território ultramarino desde o século XIX. O colosso, que pode alcançar 10 metros de altura, é alimentado por ventos de até 100 quilômetros por hora formados entre o Círculo Polar Antártico e o sul da Austrália e da Nova Zelândia. A composição geológica favorece as imensas ondas — em uma curta distância sai-se de profundezas de até 1 400 metros para escassos 50 centímetros, condição que esculpe os icônicos tubos.
O medo que os cerca é tema inescapável desde sempre e especialmente agora, na franja dos Jogos Olímpicos. Para o californiano David Lee Scales, produtor e jornalista, um dos mais respeitados especialistas nas pranchas que vão e vêm, a escolha do Taiti é “um ato de negligência intencional que beira a sociopatia”. Há algum exagero, claro, mas convém não desdenhá-lo, dado o histórico do lugar, conhecido pelas “vacas” homéricas — as vacas são os caldos. O brasileiro Neco Padaratz quase se afogou depois de ficar preso em um coral no ano 2000. Em 2011, a brasileira Maya Gabeira, casca grossa em ondas gigantes, quase morreu em Teahupoo. Levou cinco ondas na cabeça. Era sugada e arremessada para baixo. Colegas tentaram salvá-la, em vão. Maya desmaiou. Anos depois ela voltaria ao Taiti, retorno registrado em documentário, retrato de quem não desiste do que parece impossível. “Simplesmente eu estava no lugar errado, na hora errada”, disse a respeito do tombo nada pacífico. Quatro surfistas já morreram ali.
Contudo, e assim é o surfe, o risco promove o cuidado e a excelência, em misto paradoxal de encanto e temor. “É uma das etapas mais esperadas pelos surfistas”, disse a VEJA o campeão olímpico em Tóquio, Italo Ferreira. “A onda parece ser desenhada no caderno, de tão perfeita. É fácil, mas ao mesmo tempo perigosa, se não houver uma boa leitura.”
Houve, em algum momento da candidatura da Olimpíada, a ideia de organizar as provas de surfe no litoral da França — ou mesmo em algum trecho do Rio Sena, com agitação artificial, mecânica, mas o projeto não prosperou. As águas calmas do rio que “corre docemente, devagarinho, sem barulho e sem fazer espuma”, como descreveu o poeta Jacques Prévert (1900-1977), não servem ao esporte. A escolha pelo Taiti tem coerência, mas é ruidosa. Lamenta-se o estranhamento da distância e a relação do arquipélago com a França, em passado construído, em parte, pela violência da colonização. Há ainda uma outra mancha, mais recente — a reconstrução da imagem do pintor Paul Gauguin (1848-1903), para quem a Polinésia Francesa, onde viveu, era o porto idílico para telas com retratos de mulheres sensuais. Gauguin tem sido revisto, com razão, em decorrência da erotização das jovens taitianas, com quem manteve relações sexuais, conforme apontam suas anotações. Todo esse caldo de cultura, o da sociedade e o das marés, virá à tona nas provas de Teahupoo, não por acaso conhecida como a “praia dos crânios quebrados”.
Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2023, edição nº 2854