1. A primavera árabe
A festa do islã no inverno do Catar
Foi bonita a festa, pá – é o que dirão, no futuro, os torcedores dos seis países de religião majoritariamente islâmica, primos do Catar, que fizeram a festa em Doha, nos estádios e no Souk Waqif, o mercado de todos os encontros. A turma do barulho – que celebrou sua primavera particular, fora de casa, como se vivesse um estado de sítio ao avesso – é composta de Irã, Arábia Saudita, Tunísia, Marrocos e Senegal. Marroquinos e senegaleses seguem na balada das oitavas. Duro mesmo será retomar a vida normal, depois de dezembro, em mares de autoritarismo e deserto de liberdade.
2. Muito além de uma bola de futebol
Um Mundial marcado pelos protestos – inclusive dos jogadores
Desde 2010, quando a Fifa decidiu que a Copa do Mundo seria realizada no Catar – decidiu não, forçou a barra, com denúncias de compra de votos –, sabia-se que haveria uma avalanche de protestos de entidades internacionais contra os sobejos maus tratos a operários, a misoginia e a homofobia oficiais. O inesperado é que as manifestações chegassem aos jogadores. Pelo menos seis capitães de seleções europeias tinham anunciado entrar em campo com a braçadeira multicolorida e a marca One Love, em apoio à comunidade LGBTQIAP+, reprimida e atacada pela monarquia absolutista do Catar. Na véspera do apito inicial, a Fifa ameaçou com punições, inclusive com cartões amarelos. Houve recuo, mas foi uma vitória de pirro dos cartolas. A Inglaterra de Harry Kane se ajoelhou no gramado na estreia contra o Irã, repetindo o gesto do futebol americano que viralizou pela esporte. O time titular Alemanha de Muller, antes de perder para o Japão, a caminho da eliminação precoce, pôs a mão na boca na hora da foto oficial.
A Copa de 2022 será lembrada por esses momentos, mas também pela permanente tensão com o Irã – no gramado e nas arquibancadas. Diante da Inglaterra, os jogadores da seleção persa não cantaram o hino nacional, em grita contra o recente assassinato de uma moça curda iraniana de 22 anos, Mahsa Amini, assassinada, depois de repressão policial, porque deixara fios de cabelo à mostra debaixo do véu islâmico, em 16 de setembro. De lá para cá, o país entrou em ebulição – e o futebol não podia estar alheio. O silêncio dos atletas rachou a torcida – parte vaiou, porque defende o governo, parte aplaudiu e levantou cartazes. Nas ruas de Teerã, quando o Irã foi eliminado pelos Estados Unidos, houve alegria e tristeza em igual dimensão. Para quem acha que o Brasil mergulhou numa polarização sem saída, que tal dar um pulinho no Irã?
3. Sebastianismo F.C.
O gol que Cristiano Ronaldo quis para ele
Cristiano Ronaldo, cuja arrogância só não é maior do que sua vontade de vencer, saber ter encontrado o messias que levará a taça de campeão do mundo para Lisboa: ele mesmo, o dom Sebastião da bola. Ele celebrou como nunca o gol de cabeça contra o Uruguai, pela segunda rodada do Grupo H. Era o nono do craque português em Copas, igualando o recorde de Eusébio. #SQN. O indomável CR7 não tocou na pelota, nem mesmo com um mísero fio de cabelo. A Fifa, que havia atribuído a ele a o tento, voltou atrás. Chegou ao veredito por meio do chip que vai dentro da bola. Foi golo de Bruno Fernandes, sujeito boa praça que admitiu: “Comemorei como se fosse gol de Cristiano Ronaldo”.
4. O 7 x 1 de Messi
A doída estreia da Argentina na Copa
Os camelos vestiram camisa listrada e saíram por aí, como zebras. Nenhuma tão garbosa como o 2 a 1 da Arábia Saudita contra a Argentina, na primeira partida do Grupo C. Para os argentinos – que depois se recuperariam, ao vencer México e Polônia – foi como um 7 a 1. A fotografia de Ricardo Corrêa, de VEJA e PLACAR, registra o exato momento em que sete sauditas cercavam Messi. A Argentina pode ir muito longe ainda na Copa, mas a estreia em 2022 será marcada para sempre como um tanto mal executado. Surpresa semelhante somente outras três: a vitória dos Estados Unidos contra a Inglaterra em 1950 ( 1 a 0); a vitória da Coreia do Norte contra a Itália, em 1966 (1 x 0) e a de Camarões contra a Argentina, em 1990 ( 1 a 0).
5. Geometria é tudo
O golaço de Richarlison
Que Richarlison é boa praça, ninguém duvidada. Que é um sujeito decente, também não – apoiou claramente a distribuição de vacinas contra a Covid-19 no Brasil, no avesso do negacionismo da turma de Bolsonaro, ajudou a comprar cilindros de oxigênio para Manaus… e então, na estreia contra a Sérvia, marcou duas vezes, na boa vitória por 2 a 0. O segundo foi um primor, um lance acrobático e geométrico registrado pelas lentes de Alexandre Battibugli, de VEJA e PLACAR. Olho na bola, as pernas em L, tudo certinho. Golaço, talvez o mais bonito da Copa até aqui.
6. Não acaba nunca mais
O festival de acréscimos nos jogos
A nova orientação da Fifa: caprichar nos acréscimos, para evitar que os times que pratiquem a malfadada “cera” tenham alguma vantagem. E nunca como antes houve tanto tempo a mais em Copa do Mundo. Na goleada da Inglaterra sobre o Irã por 6 a 2 na segunda-feira, 21, por exemplo, o brasileiro Raphael Claus deu 24 minutos de tempo adicional no total. A contusão do goleiro iraniano Beiranvand explica boa parte desse número, mas não tudo. Disse o chefe de arbitragem da Fifa, Pierluigi Collina, sobre a enrolação: “Isso precisa ser compensado no fim. Não podemos achar normal que o jogo tenha só 42, 45 minutos de bola rolando. Nós queremos ver a bola em jogo”. Nós também.
7. A chatice dos reservas
Qual a graça de trocar o time inteiro?
A França pagou caro, e perdeu da Tunísia – mesmo tendo ficado em primeiro lugar do grupo, foi dormir com travo amargo. O Brasil se deu bem mal também, ao perder para Camarões com a turma do banco. Ou seja: não tem graça nenhuma, em Copa do Mundo, trocar o time inteiro e pôr reservas para jogar. Tanto no caso francês quanto o brasileiro, há agora um cisma que pode ser perigoso para o ambiente dentro do vestiário: há uma seleção que ganha, outra que perde. Há um cipoal de motivos para poupar atletas, não há nada de muito errado, mas pode ser desrespeitoso com os torcedores e com a história das Copas. Precisava mesmo mudar tudo e brincar de amistoso? Quebra a magia de um Mundial, torneio curto que, no imaginário popular, resulta em escalações cantadas em verso e prosa. Times com começo, meio e fim, que crescem ao longo da disputa. É covardia lembrar, a título de exemplo, dos onze ou doze de 1970: Félix; Carlos Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo, Gerson e Tostão; Pelé, Jairzinho e Rivellino, com Caju como o décimo segundo jogador. Mas nem mesmo em 1998, na partida contra a Noruega (derrota por 2 a 1), a última da primeira fase, Zagallo pôs reservas no gramado. Em 2002, Rivaldo, Ronaldinho Gaúcho e Ronaldo jogaram todas as partidas. Tem um quê de saudosismo na defesa da permanência dos titulares, algo de infantil (saudade do Jairzinho na Copa de 1970 estufando a rede em todas as seis partidas), mas é bom saber os nomes de um time de cor e salteado.
8. Já estava na hora
A primeira vez das mulheres juízas e bandeirinhas
Demorou. Foram 92 anos e os primeiros 32 jogos da primeira fase da Copa do Catar. Mas finalmente um trio de arbitragem feminina apitou jogo de Mundial, entre Alemanha e Costa Rica. A juíza foi a francesa Stéphanie Frappart e as bandeirinhas, a mexicana Karen Díaz Medida e a brasileira Neuza Back. Que seja a primeira de muitas partidas, até que no futuro dividam espaço com os homens.
9. A honra globalizada
O gol que Embolo não comemorou
Toda Copa do Mundo é também uma aula de história e sociologia. Por meio dela é possível traçar as contradições de um planeta desigual, o fosso entre os ricos e os pobres, o abismo entre as nações democráticas e as autoritárias – as diferenças, sublinhe-se, que alimentam as correntes migratórias. Não houve, no Catar, retrato mais claro desse caldo de cultura do que o gol solitário feito pelo atacante suíço Embolo contra Camarões, na primeira rodada, vitória por 1 a 0. Aos 25 anos, nascido em Yaoundé, a capital camaronense, ele é cidadão da Suíça desde 2014. Migrou com a mãe, separada do pai, ainda criança. Buscavam vida mais decente. Ao balançar a rede, ergueu os braços para deixar claro que não estava comemorando e levou as mãos à boca. Há, na Copa de 2022, 130 jogadores que disputam o torneio por seleções de países em que não nasceram – o equivalente a 15% do total de inscritos.
10. Cadê ele?
Contundido, Neymar passou em branco a fase de grupos
A resposta ao título desse décimo ponto da lista dos grandes momentos da Copa, ou ao menos dos instantes que merecem registro especial: Neymar está no departamento médico. Depois da torsão no tornozelo direito ao dividir uma bola com o lateral sérvio Milenkovic, aos 22 minutos do segundo tempo da estreia, ele deixou o gramado e pelo menos até a partida contra Camarões ficaria fora. Faz fisioterapia, aplicações de gelo e toma anti-inflamatórios – e de vez em quando posta alguma coisa nas redes sociais.