Rebeca Andrade chega aos Jogos de Paris em busca da consagração definitiva
Em Tóquio, ela apresentou-se ao mundo. Ela chega agora, em 2024, a uma nova Olimpíada, sem nunca perder de vista o jeitão das meninas de seu tempo
As mães (e alguns poucos pais) que aguardam para lá do alambrado as filhas (e poucos filhos) praticantes de ginástica artística no Ginásio Bonifácio Cardoso, em Guarulhos, nas cercanias de São Paulo, ficaram comovidas com a cena: lá vinha a psicopedagoga Erika Martins levando no pescoço Manuella, de 10 anos, com o pé direito machucado. Daquele jeito, trôpego, a dupla saía de casa de manhã cedo para percorrer uma hora e meia de ônibus, cinco dias por semana, o caminho até o treino, porque a menina não podia faltar, de jeito algum. A mãe deixou o emprego para zelar pelo sonho de Manu. No início, ela queria ser treinadora e, quem sabe, árbitra. A habilidade com as barras e traves, a destreza dos saltos e o equilíbrio a levaram às medalhas nos torneios locais — e à vontade de abraçar o mundo. Manu convenceu a família a publicar no YouTube um vídeo para divulgar uma rifa, juntou dinheiro e pediu para o pai, feirante, montar aparelhos como os oficiais na sala de casa. Os pés riscam o lustre, se aproximam perigosamente da televisão, quase chegam ao fogão pousado no pequeno espaço. Manuella e a irmã, Melissa, de 5, não param de se exercitar — como se o andar de cima do sobrado simples, onde moram, fosse o olimpo, e na imaginação das crianças é. Não demorou para que a campeã pré-adolescente fosse apelidada de “Rebequinha”.
Manuella gosta da comparação, guarda com carinho uma foto e o autógrafo de Rebeca Andrade — a moça de Guarulhos, hoje com 25 anos, que começou como a amiguinha mais nova e, nos Jogos de Tóquio, em 2021, no silêncio da pandemia, ganhou ouro no salto e prata no individual geral para virar um nome internacional, a principal desafiante da fenomenal americana Simone Biles. Rebeca chega a Paris como o grande destaque brasileiro, estrela reluzente da Olimpíada, personagem obrigatório, agora diante de animadas plateias. Há diversas semelhanças entre as meninas paulistas, e algumas dessemelhanças. É a vida de quem fez do esporte um atalho para derrubar os obstáculos, apartar os problemas, derrotar a pobreza, demolir os preconceitos e subir ao pódio. “Quero ser como ela”, diz Manuella. Rebeca, olhando para trás, pode dizer que foi como Manuella. “Na infância, não tinha muitas referências, mas logo me apaixonei pela Dai, a Daiane dos Santos”, disse a VEJA. “Fico feliz em saber que eu posso servir de exemplo para as próximas gerações de atletas, como mulher negra. Que bom, não é, representar alguma coisa para a sociedade?”
Se a vida de Rebeca fosse um filme clássico de cinema, um drama de redenção, de alguém a almejar o improvável — e assim é, costurado com a beleza da simplicidade —, seria conveniente começar do começo. O irmão Emerson, 8 anos mais velho, é quem a levava de bicicleta, comprada em um ferro velho, para o ginásio. Na ida ou na volta, ele dava um jeito de encaixá-la no quadro para que a irmã pudesse dormir um pouquinho, cansada. O garoto, hoje com 33 anos, de sorriso largo e modesto, trabalha na loja Rainha das Tintas. Aqui e ali o reconhecem, a caminho de pegar uma lata e levá-la para o balcão, celebrado como o mano da rainha. “Éramos pobres de marré deci”, diz Rosa, a mãe, ex-empregada doméstica e passadeira industrial, usando o conhecido dito popular. Ninguém jura de pés juntos, mas a toada infantil que produziu a expressão teria vindo de uma canção parisiense do século XIX para diferenciar o pobre do rico, ao citar o nome de duas regiões da cidade: “Je suis pauvre, pauvre du Marais, Marais, Marais. Je suis riche, riche, riche de Mairie D’Issy”.
Não havia, como na casa de Manuella, as instalações esportivas no meio da sala, mas os Andrade (oito filhos, seis homens e duas mulheres, de dois casamentos de Rosa) lembram com saudoso orgulho das tardes e noites em que Rebeca — dolorida, recuperando-se de alguma cirurgia, e foram três de ligamento cruzado no joelho direito — alongava-se no encosto do sofá, tal qual um espacate, sofrendo, mas feliz com o futuro imaginado. Era comum, antes da fama, quando ainda podia andar pelas ruas como uma menina qualquer, que a turma toda das vielas de barro se reunisse na casa de Maria Aparecida, a tia Cida, figura decisiva na trajetória da heroína, que ainda vive no mesmo endereço, espartano de marré deci. Cida era faxineira e cozinheira no Bonifácio Cardoso. Um dia, ficou sabendo que haveria teste para as aulas do cobiçado espaço e logo pensou na sobrinha. “A Rebeca ia buscar pão dando estrelinha”, lembra Cida. Tinha 3 ou 4 anos. Não demorou para que a treinadora Mônica Barroso dos Anjos identificasse a evidente promessa. “No tablado ela parecia uma pipoca”, lembra Mônica. “Era rápida, explosiva, tinha o biótipo ideal. Um pouquinho imatura, brincalhona demais, mas nada que o tempo e a perseverança não corrigissem.” Nada mesmo.
A pipoca lá dos primórdios nunca parou de estourar, e talvez seja esse jeitinho que a fez chegar tão longe. Depois de Mônica, Rebeca passou a ser acompanhada por Keli Kitaura, que a levaria para Curitiba, onde desabrocharia de vez. “Era uma espoleta, parecia estar sempre se divertindo”, diz Keli. “Nunca vi menina tão talentosa, e quando descobriu seu corpo, cresceu demais.” A gestora esportiva do Comitê Olímpico do Brasil, Juliana Fajardo, responsável pela equipe de ginástica artística — e o Brasil tem um grupo de respeito, com Rebeca, Flávia Saraiva, Jade Barbosa, Julia Soares e Lorrane Oliveira —, seguiu de perto o crescimento da medalhista em Tóquio e parece não ter dúvida da atleta adulta que a criança agitada virou. “Ela tem uma inteligência corporal inigualável, capaz de posições e rotações em eixos diferentes”, diz.
É extraordinário, em capacidade aplaudida unanimemente no circuito internacional. É praxe: na véspera das competições, as ginastas fazem o reconhecimento das arenas. A maioria cai, perde a noção do que é chão e do que é teto, embaralhada pela luz. Assim será na Olimpíada. Com Rebeca é pá-pum, parece simples, e de primeira ela reconhece o espaço e com ele se acerta, como veterana onde quer que esteja, seja em Guarulhos, seja no Rio de Janeiro, onde vive, seja em Paris. Rebeca, aliás, lembra de um momento nas barras assimétricas, aparelho em que não para de evoluir, que virou marco de respeito entre as colegas. Foi em Curitiba, faz pouco tempo. Ela: “A mão escapou, tive a sensação de que bateria na paralela de baixo, com força; pensei rápido, vou grupar, vou fazer uma bolinha; consegui dar um mortal e meio e cai com alguma segurança, não aconteceu nada. Mas não sabia onde estava”.
São movimentos delicados, perigosos — que remetem a um fenômeno psicológico, os twisties, tornado conhecido nos Jogos de Tóquio pela coragem de Simone Biles ao abandonar as provas porque não andava bem da cabeça, pressionada como ninguém. Os twisties, potencializados pelo estresse, fazem com que atletas percam momentaneamente a noção espacial. Rebeca, é claro, não está imune a eles, e cuida do problema com apoio de psicólogos. E lá vai ela, levando a vida a dançar, ou a correr, atrás dos dois cachorros de estimação, um border collie, o Aslam, como o personagem de As Crônicas de Nárnia, e um west highland white terrier chamado Snow. “Sou feliz com o que faço, a vida já é tão difícil, por que vou ficar chorando?”, diz, como quem resume a toada de vida — apesar das dores, apesar da rotina extenuante de treinos e viagens, apesar da falta de tempo para seguir nos estudos, o curso de psicologia na Faculdade Estácio de Sá, com aulas dadas por professores nas instalações do Centro de Treinamento na Barra da Tijuca, no Rio.
Gostar do que faz é fundamental, e Rebeca, como poucas, sabe lidar com o aspecto artístico do esporte, de permanentes closes na televisão. Ela é quem prepara a maquiagem antes das provas e monta o cabelo. “Gosto de estar bonita, muito bonita. Afinal, as câmeras vão mostrar a gente bem de pertinho”, diz. Não é vaidade. É o nítido conhecimento do metiê, em postura reconhecida por quem entende do riscado. A romena Nadia Comaneci, que em 1976, aos 14 anos, espantou o mundo com a leveza nota 10 de seus movimentos, instada a comentar o duelo de Simone Biles e Rebeca Andrade, resumiu a ópera: “Biles tem habilidades incríveis, acrobáticas, que muitas pessoas não fazem. Rebeca tem as acrobacias, mas é uma artista. Ela é como uma diva”. O comentário de Comaneci encaminha uma bonita costura histórica de gerações. A atleta que estabeleceu a primeira grande revolução da ginástica (nunca ninguém tinha recebido avaliação máxima) de mãos dadas com a líder da segunda revolução, Simone, de potência e rigor inigualáveis, e Rebeca — que bebe das duas fontes, a leveza associada com a força, como em um balé.
De Jerzy Grotowski (1933-1999), diretor polonês de teatro: “A arte da dança se manifesta de maneira mais clara quando os pés dos bailarinos não tocam o solo”. Eis um bom modo de acompanhar a ginástica na Arena Bercy (a competição por equipes feminina acontece em 30 de julho; a individual geral em 1º de agosto). Será oportunidade de estender o tempo do efêmero, emocionar-se com a leveza, congelar o mundo por alguns segundos. Quando se prepara para a prova de salto, e a plateia tem o grito parado no ar, Rebeca faz esse exercício mental, ao se afastar do real. “Imagino a série, converso comigo mesma”, diz. “Não tem nada de ó, que coisa… Basta manter a calma, refazer os movimentos, ter o controle do corpo.”
Ter o controle do corpo, citius, altius, fortius, eis o segredo — o comando de quem dança, por prazer, por afinidade, porque assim tem de ser. Ao receber VEJA para a sessão de fotos que ilustram esta reportagem, Rebeca fez questão de música ao fundo. Entre um bloco e outro dos cliques, instada a trocar de figurino, ela foi ao minúsculo banheiro e fechou a porta. Dali, diante do espelho, postou no TikTok e nos Stories do Instagram um pequeno vídeo, com dancinha, é claro. O título do filmete: “Voltei”. A trilha, Foto da Unha, de L7nnon: “Era só o que me faltava / Essa gata com marra / fazendo fotinha no espelho / Com a unha decorada / Não sei se é bailarina, amendoada ou stiletto / Ó que morena jogada / Eu falei que não ia pro baile, ela foi assim mesmo (uh, uh, yeah)”.
Uh, uh, yeah, morenas jogadas, a cara de nosso tempo, vitoriosas e altivas, pessoas de carne e osso que podem atravessar o túnel da depressão, Rebeca e Simone desembarcam nos Jogos prontas para um duelo inesquecível. E é agora ou nunca, porque nem sempre teremos Paris. Elas logo encerrarão suas carreiras. Depois da cerimônia de medalhas no mundial de Antuérpia, no ano passado, as duas foram filmadas juntas, entre o riso largo e o choro miúdo. A brasileira Flávia Saraiva estava ao lado. Biles: “Vocês vão continuar na ginástica?”. Flávia: “Sim”. Ao que Rebeca pegou um atalho: “Não sei, depende do meu corpo, dói, não? E você, Simone?”. A americana não demorou a responder: “Para mim já deu, eu paro”. Até lá, antes que parem, é hora de acompanhar a mágica disputa, tão esperada por quem gosta de esporte. Está na hora, para alívio de Rebeca: “Até o ano de 2030 já chegou, e esse 2024 que não chegava nunca?”.
“Gostaria de ser um pouco mais alta, hahaha”
Nada mais adequado, dado a Olimpíada ser em Paris, do que submeter Rebeca ao famoso Questionário Proust. Ele foi elaborado em 1885 pelo escritor Marcel Proust (1871-1922) para desenhar o perfil das pessoas que entrevistava. Não demoraria a virar um jogo de salão da burguesia francesa.
Qual sua ideia de felicidade perfeita? Ter minha família, amigos, cachorros por perto e poder viajar e conhecer o mundo.
Qual seu maior medo? Quando minha mãe não estiver mais aqui.
Que característica mais detesta em você? Ser um pouco impaciente.
Que característica mais detesta nos outros? Arrogância e prepotência.
Que pessoa viva você mais admira? Minha mãe, embora haja muitas outras.
Qual sua maior extravagância? Mimar meus cachorros.
Qual seu estado mental atual? Muito bem, graças a Deus, mental e espiritualmente.
Em que ocasião você mente? Odeio mentiras, procuro sempre ser muito sincera e clara sobre qualquer situação que esteja passando, tanto na vida pessoal quanto na profissional.
O que menos gosta em sua aparência? Hoje eu me amo e gosto muito de quem sou. Mas no passado gostaria de ser um pouco mais alta, hahaha (Rebeca tem 1,45 metro).
Que qualidade mais admira em um homem? Inteligência, princípios e caráter.
Que qualidade mais admira em uma mulher? Inteligência, princípios e caráter.
Publicado em VEJA de 26 de julho de 2024, edição nº 2903