Selvageria futebol clube: episódios de violência têm escalada no Brasil
Casos atingem torcedores e atletas, mas as autoridades esportivas não agem com determinação para coibi-los
Há uma guerra em curso no Brasil. As batalhas acontecem dentro e fora dos estádios de futebol e atingem tanto torcedores quanto jogadores e comissões técnicas. Apenas neste ano, pelo menos seis grandes episódios de violência tomaram de assalto o noticiário esportivo. Em um deles, um torcedor morreu baleado em frente ao Allianz Parque, em São Paulo, após a derrota do Palmeiras para o Chelsea na final do Mundial de Clubes, no Catar. Em outras duas ocasiões, atletas foram hospitalizados com ferimentos graves. É uma escalada impressionante e sem precedentes que mancha o futebol mais vitorioso do planeta. Contudo, apesar da grita generalizada contra esse estado de coisas, as investigações se arrastam e raramente os agressores são identificados e punidos com o rigor necessário.
Os sinais para que se faça algo são evidentes — e de perder o fôlego. Na última semana de fevereiro, no espaço de três dias, quatro ocorrências violentas despontaram vergonhosamente. O ônibus que transportava a delegação do Bahia foi atingido por bombas no caminho para a Arena Fonte Nova, em Salvador, onde o time enfrentaria o Sampaio Corrêa em partida da Copa do Nordeste. O goleiro Danilo Fernandes sofreu ferimentos pelo corpo, um dos quais perigosamente perto do olho, e foi internado. Câmeras de segurança mostraram a ação do grupo. Apesar do incidente, a partida foi realizada, com placar de 2 a 0 para o time baiano. Naquela mesma noite, a torcida do Náutico, eliminado da Copa do Brasil pelo Tocantinense, recepcionou com pedras a van que transportava a equipe. Ninguém se feriu.
Na Região Sul, não é diferente. Em Porto Alegre, o ônibus do Grêmio foi alvo de pedradas na chegada ao Estádio Beira-Rio para o clássico regional contra o Internacional, válido pelo Gauchão. O volante paraguaio Mathias Villasanti, ferido na cabeça, pouco abaixo do olho esquerdo, precisou ser levado ao hospital. A cúpula gremista pediu adiamento do jogo e foi atendida pela Federação Gaúcha de Futebol. Em Curitiba, torcedores do Paraná Clube invadiram o gramado do Estádio Vila Capanema no fim da partida contra o União pelo campeonato estadual. Estavam inconformados com a derrota por 3 a 1 que rebaixou o time para a segunda divisão e passaram a perseguir os jogadores em campo. A partida foi interrompida, e o Batalhão de Choque local acionado.
Há o que fazer? Sim, e bastaria um olhar retrospectivo. Em 1985, o mundo se espantou com a Tragédia de Heysel, na Bélgica, quando 39 pessoas morreram no dia da final da Taça dos Campeões da Europa entre Liverpool e Juventus. Pouco antes da partida, os torcedores ingleses atacaram os italianos, pressionando-os contra os painéis que os impediram de entrar no campo. Na época, a então primeira-ministra britânica Margaret Thatcher declarou guerra “aos hooligans”, que atormentavam o futebol inglês há mais de uma década. E foi a pedido dela que a Associação de Futebol suspendeu os clubes ingleses das competições europeias por um ano. A Uefa, mais rigorosa, estendeu a suspensão por outros quatro anos e afastou o Liverpool de torneios oficiais até 1991. Foi um tratamento de choque que, ressalte-se, reduziu a selvageria nos gramados britânicos. Não seria incoerente aplicá-lo ao Brasil.
No entanto, esse tipo de remédio amargo ainda não foi utilizado pelas bandas de cá, extremamente leniente com as barbaridades. Para além das investigações policiais, nada é feito para punir comportamentos violentos que têm por trás a marca indelével das torcidas organizadas. “Há semelhanças entre os comportamentos dos famigerados hooligans e dos torcedores organizados do Brasil”, diz Benjamin Rosenthal, professor da Fundação Getulio Vargas. “Agem em grupo coeso, movidos por um senso de lealdade e em nome de uma imagem machista.” Têm, portanto, todas as características para dar problema. Há uma agravante hoje em dia: muitas vezes, os ataques são combinados em conversas nas redes sociais, que reproduzem o ódio e a intolerância que se veem na sociedade. Resta esperar que as autoridades do futebol façam sua parte. Antes que seja tarde — e ao grito de gol se sobreponha o do horror.
Publicado em VEJA de 9 de março de 2022, edição nº 2779