A batalha em torno da certificação do vinho croata Prosek pela UE
Governo e produtores italianos brigam contra aval para bebida de nome parecido com o do prosecco, o espumante mais vendido globalmente
Na Europa, boa mesa é assunto tão sério que, por pouca coisa, as relações entre dois países podem entrar em ponto de fervura. A escaramuça do momento envolve, de um lado, a Itália e seu prosecco, o espumante mais vendido do mundo, e, de outro, a Croácia e seu Prosek, um vinho de sobremesa de consumo local. Em outubro, a União Europeia aceitou analisar o pedido croata de certificação de origem para o Prosek, o que lhe garante direito de uso do nome para a bebida produzida na Dalmácia, às margens do Mar Adriático, e sua comercialização no continente. Desde então, governo e produtores italianos pressionam a Federação Europeia de Vinhos de Origem para negar a reivindicação croata, alegando que autorizar a presença dos dois nomes parecidos nas prateleiras não só pode confundir os consumidores, como abrir precedente para ações que ameacem queijos, massas, embutidos e uma série de outros produtos alimentícios de identificação relacionada ao local onde são produzidos.
A semelhança entre prosecco e Prosek se restringe à grafia e aos preços, entre 6 e 30 euros a unidade. O vinho croata leva uvas nativas do país, não borbulha e apresenta sabor adocicado. O prosecco, por sua vez, feito para ser consumido puro ou em spritzes, os drinques borbulhantes, é a bebida que embala o fervilhante verão europeu. Em 2020, quando a pandemia levou a um aumento do consumo de bebidas alcoólicas, a Itália produziu 600 milhões de garrafas, movimentando 5 bilhões de euros em faturamento, um recorde para o espumante de acidez equilibrada e sabor refrescante feito com uvas do tipo glera. Na Alemanha e na própria Itália, o salto de vendas foi de 20%. No Brasil, a comercialização de 300 000 litros também foi recorde. “O prosecco faz parte da história da Itália e é motivo de orgulho nacional. Qualquer ameaça a ele terá sempre uma dura resposta”, diz Fernando Lima, da Associação Brasileira de Sommeliers.
A Itália já amargou uma derrota nesse campo quando, em 2005, a Comissão Europeia determinou que a Hungria, e só ela, tinha direito ao nome da região de Tokaji para identificar um conhecido vinho de sobremesa, obrigando os produtores italianos de friulano tocai (este, o nome de uma uva local) a remover a segunda palavra de seu rótulo — a decisão afetou também vinicultores na Alsácia e na Austrália. Os ciosos fabricantes do champanhe francês igualmente perderam o sono quando, em julho, o governo da Rússia decidiu que a bebida borbulhante tradicionalmente produzida no país — e só ela — pode ser chamada de champanskoe, sendo todas as demais, inclusive o champanhe francês, relegado à denominação geral de espumante. Diante da grita geral, decidiu-se que a medida só vale para novos produtos dessa linha.
Dentro da própria Itália, o Prosekar, um parente próximo do prosecco feito nos arredores de Trieste, também gostaria de ter seu selo de origem e acompanha de perto a campanha do Prosek croata. Detalhe: o centro de produção fica na cidade de Prosecco, berço de todos os espumantes italianos. “O vinho daqui nasceu 300 anos antes do atual prosecco”, afirma Milos Skabar, dono de um vinhedo na região. A Itália responde por 27% da produção global de espumantes, seguida da França (22%), Alemanha (14%) e Espanha (11%). A campeã de faturamento, porém, segue sendo a França, visto que seu carro-chefe, o champanhe, custa até dez vezes mais. “A grande popularidade do prosecco é explicada justamente pelo equilíbrio entre qualidade e preços razoáveis”, diz o pesquisador Mauro Zanus, da Embrapa Uva e Vinho.
Embora seja conhecido desde a Antiguidade, foi a partir do século XVIII que o prosecco se popularizou por toda a Itália e as regiões do Vêneto e de Friuli-Venezia Giulia, no nordeste do país, se consagraram como produtoras oficiais dessa variedade de espumante. Em 2009, elas receberam o selo D.O.C., que garante controle sobre a origem e a garantia de que só é prosecco se foi feito lá. Nas redondezas da sereníssima Veneza, a bebida é tema de celebrações anuais e estrela de clubes exclusivos, como a confraria de cavaleiros de Valdobbiadene, onde faz parte do ritual dos novos membros entornar no mínimo meia garrafa de uma só vez. Vilarejo a uma hora de distância de Veneza, tombado pela Unesco como Patrimônio da Humanidade, Valdobbiadene sonha ser a meca do prosecco. “Queremos tornar nossa cidade conhecida em todo o mundo. Ela é rica em história, tradições e cultura”, disse a VEJA o prefeito, Luciano Fregonese. Salute!
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2021, edição nº 2764