Para os cidadãos da Roma Antiga, o vinho era uma necessidade diária. Ao expandirem as fronteiras do império pela Europa, a leste e oeste, levaram a tiracolo mudas de parreiras, ferramentas e conhecimento agrícola. Desse modo, ajudaram a disseminar e fortalecer a viticultura tanto em regiões que se tornaram referência na produção de vinho, como Bordeaux, na França, quanto em outras pouco celebradas, um tanto escondidas dos guias e manuais, mas com história de produção igualmente rica e condições ideais para produzir uma bebida de alta qualidade. Bierzo, em Castilla Y León, no noroeste da Espanha, é um dos nacos que merece visibilidade. Sabe-se haver videiras por lá há pelo menos 2 000 anos, desde que o naturalista Plínio, o Velho (23-79) tratou de descrevê-las. Na Idade Média, a chegada de cistercienses ajudou a promover ainda mais a prática, ampliando as áreas cultivadas e tornando os rótulos locais celebrados na Espanha. A produção, contudo, sofreu com a praga da filoxera, de imensa devastação no século XIX. O resultado foi a irrelevância.
Agora, contudo, em fascinante movimento — e graças ao trabalho de respeitados enólogos — há rápida recuperação de prestígio. O atual sucesso tem relação direta com a geologia de Bierzo. Há, ali, variedade de solos distintos, o que faz com que brotem pequenos espaços de terra afeitos a modalidades diferentes, como acontece na Borgonha francesa. Cada vinhedo — ou parcela, como ensina o jargão — recebe um nome e tem características próprias. Alguns, localizados em partes mais baixas da Serra dos Ancares, têm textura mais argilosa. Outros exibem maior concentração de minerais como a ardósia. Tudo isso se reflete na qualidade das uvas, especialmente na Mencía, principal cepa local. Há um outro aspecto interessante, a grande concentração de vinhas velhas — são mais de 3 500 hectares de vinhedos para lá de centenários. Tradicionalmente, videiras de mais idade produzem menos, mas as uvas são de qualidade excepcional, refletem de forma clara o chamado terroir, a combinação de fatores que tornam cada pequeno naco de terra um canto cobiçado pelos produtores.
Some-se à evidente qualidade do que a natureza entrega uma mudança de hábito dos consumidores. Durante décadas, sob influência do crítico americano Robert Parker, o mercado preferia vinhos mais potentes e estruturados, com longas passagens por barricas de madeira. Nos últimos anos, porém, o paladar se voltou para outro lado do espectro: vinhos mais frescos e leves. Os rótulos produzidos em Bierzo ostentam esse perfil rejuvenescido (e mais em conta). Hoje, os melhores exemplares são comparados aos grandes vinhos de Pinot Noir da Borgonha e e Nebbiolo, na região de Barolo, na Itália.
A onda tem um rosto: o veterano enólogo Raúl Pérez, onipresente na celebração da variedade Mencía e um dos líderes do trabalho que fez Bierzo ser reconhecida, a partir de 1989, como região de Denominação de Origem, selo que indica a procedência do vinho. Nascido e criado entre os vinhedos, Pérez cultivou raízes, e de lá não sai, a não ser para viagens de divulgação. Professor cuidadoso, o mentor formou uma novíssima geração de profissionais. É o caso do jovem enólogo Diego Magaña, à frente do Dominio de Anza. Filho de viticultores, ele decidiu se afastar da empresa do pai para desenvolver um projeto próprio. Sua metodologia de trabalho é comprar as melhores uvas dos produtores de Bierzo e preparar o vinho com a menor intervenção possível. Passa a bebida por barricas, mas evita ao máximo que os aromas e sabores da madeira, antes tão buscados, se sobreponham ao perfil fresco da fruta vermelha. É lida delicada. O resultado são garrafas que podem ser consumidas agora mesmo, mas ganham vida com a guarda. “Um grande vinho está sempre pronto para ser bebido”, diz Magaña. Grandes vinhos que, revelam as enciclopédias, já passeavam por aquelas bandas, mas esperavam a oportunidade associada a novos conhecimentos para alcançar o merecido relevo. De Plínio, o Velho, que sabia das coisas, depois de tudo experimentar naquele canto da Espanha rico em vinhos: “é uma substância tão atraente que muitos acreditam não existir outro prazer na vida”.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2024, edição nº 2882