O apogeu da “geração canguru”, de filhos que não saem de casa
O Brasil aloja muitos jovens que esticam quanto podem a permanência na residência dos pais — e a pandemia está estimulando ainda mais esse fenômeno
Conquistar o diploma universitário, arranjar emprego, sair da casa do pais. Eis um desenrolar natural do ciclo da vida para aqueles jovens já com alguma renda para bancar a liberdade. Afinal, é o que todos aspiram, certo? Errado. O Brasil é conhecido no mundo da demografia por alojar uma generosa “geração canguru”, termo surgido no fim dos anos 1990 na França para designar a turma entre 25 e 34 anos que vai esticando a estada sob o teto da família em nome de conforto e economia. Há uma década, 20% dos integrantes dessa faixa etária moravam sob asas paternas, número que saltou para 25% e hoje, apostam os especialistas, cresce impulsionado pela pandemia, que sacudiu o modo de vida das pessoas nos mais variados terrenos. Vendo-se sozinhos na quarentena, com as finanças abatidas pela crise e preocupados em ajudar os pais, eles percorrem o caminho de volta nesses dias estranhos, não raro regressando ao mesmo quarto da adolescência, em um movimento delicado que mescla sentimentos como amparo e tranquilidade, de um lado, a certa frustração com muita incerteza, de outro.
Baqueada pelo desemprego e com o horizonte profissional nebuloso, uma parcela dos que retornam não tem ideia de quanto tempo a situação vai durar. “Os jovens são o grupo social mais desprotegido no mercado de trabalho porque, em geral, recebem salários mais baixos, têm pouca experiência e não são contratados com carteira assinada. A casa dos pais vira estratégia de sobrevivência”, diz o economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social. A inércia contribui para que parte deles alimente o plano de deixar a situação como está: é duro dar adeus a toda sorte de paparicos e à sensação de atracar em porto conhecido. “Estamos no início da vida profissional e decidimos ficar por aqui porque assim podemos poupar e, quem sabe, até viajar mais quando a pandemia passar”, explica a designer Marina Batalha, 26 anos, que preferiu interromper o contrato de aluguel do apartamento onde morava com o namorado português, em Copacabana, no Rio de Janeiro, para mudar-se, com ele, para a casa de seus pais. Era para ser provisório, só durante a crise sanitária, mas todos estão tão bem acomodados que não pensam, pelo menos por ora, em mexer na nova configuração. “O dia a dia juntos funcionou bem”, reforça a designer.
Compartilhando o mesmo território, pais e filhos se debruçam sobre um desafio de alta complexidade: são todos adultos, cada qual com seus horários e manias sedimentadas. Regras de convívio, portanto, precisam estar muito bem estabelecidas para que as relações não se esgarcem rapidamente. Produtora de mídias sociais, Izabela Antunes, 27 anos, vive sozinha há dez — sete deles no Rio, onde cursou faculdade e pós-graduação. O isolamento a fez trilhar o caminho de volta à casa da família, em Muriaé, no interior de Minas Gerais, onde passa a quarentena ao lado da mãe e do padrasto. As duas primeiras semanas foram as mais complicadas, fazendo necessárias inúmeras conversas para ajustar a rotina. “Mudei meus horários para conseguir ajudar nas tarefas domésticas e não passo tanto tempo no quarto quanto talvez ficasse se estivesse por minha conta. O saldo é tão positivo que as brigas cessaram”, relata Izabela, que só pretende voltar para o Rio quando o escritório onde trabalha decretar o fim do home office, ainda sem data definida.
Adaptação é palavra-chave nos arranjos que a pandemia estimulou — e isso vale para ambas as partes. O mandamento número 1 é não perder a noção do espaço alheio. Para os pais, às vezes é quase instintivo tratar os rebentos marmanjos como eternas crianças, um equívoco em qualquer circunstância — ainda mais nesta. Os filhos, por sua vez, precisam entender que, embora aquele ambiente lhe pareça tão familiar, quem dita os rumos na casa são os digníssimos genitores. “Os jovens não podem se comportar como nos tempos de infância. A dinâmica é outra”, diz a escritora e psicóloga Lidia Aratangy. Apesar da rotina posta do avesso, observa-se em muitos casos uma saudável reaproximação. “Vinha visitar minha família apenas duas vezes por ano. Neste período, estou revivendo as discussões da adolescência, mas, mesmo com a perda de soberania, vê-los bem com meus próprios olhos compensa tudo”, avalia a estudante de direito Flora Santana, 27 anos, que foi do Rio para a cidade natal, Franca, no interior de São Paulo, e por lá vai ficando.
O perigo desses arranjos, alertam os estudiosos, é de os filhos só extraírem o que há de bom na experiência — colo, mimo, poupança — e se esquecerem de arregaçar as mangas para lavar uma louça ou abrir a carteira para pagar uma conta. “Não dá para ignorar o fato de que o filho é agora um adulto com responsabilidades e que ele deve sempre contribuir como puder na vida em comum”, ressalta a psicóloga Ceres Araujo. Mas até o mais óbvio requer aprendizado. “Respeitar o espaço do outro não é nada fácil”, reconhece a publicitária Ana Laura Coelho, 25 anos, que foi do Rio para Bauru, migração impulsionada pela pandemia e que lhe abriu uma janela para o intenso convívio com os pais.
Os jovens da América Latina são mais propensos a prolongar a vida na casa dos pais do que os da Europa e dos Estados Unidos, que costumam estudar em cidades distantes e começam a trabalhar mais cedo. Daí se inicia o pé de meia que os alçará para fora do ninho. Um fator demográfico também pesa entre essa turma que não rompe o cordão: os brasileiros estão casando cada vez mais tarde — a média desde a década de 70 subiu de 25 para 30 anos —, e as uniões são grandes motivadoras do grito de independência. Como no Brasil viver sozinho ainda é visto como um estado estranho, às vezes até condenável, a imobilidade cresce, ancorada em uma cultura de supervalorização da casa paterna, uma instituição segura, em contraponto à rua, que já foi colônia, império, república, ditadura militar e agora é democracia. Para completar, há um componente desta era que faz os jovens ficarem onde estão. “Pesquisas mostram que eles têm cada vez mais dificuldade de amadurecer e medo da vida adulta”, lembra o filósofo Luiz Felipe Pondé. E assim caminha firme e forte (e dentro de casa) a geração canguru.
Publicado em VEJA de 8 de julho de 2020, edição nº 2694