Os sonhos foram sempre uma ferramenta para tentar escrutar os desvãos recônditos da mente humana. Entendê-los seria um atalho para superar traumas ou, ao menos, um luminoso caminho de compreensão dos problemas do cotidiano. Em muitas culturas, serviram de peça de encaixe no quebra-cabeça de visões do futuro — no livro do Gênesis, da Bíblia, José, o filho de Jacó, interpreta os sonhos do faraó egípcio de vacas gordas ou vacas magras como predição de bonança ou tempestade. Há 500 anos, os chineses criaram um minucioso dicionário de relatos noturnos para ajudar a explicar o que acontecia durante o dia. Mas foi só na virada do século XIX para o século XX, com A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud, que os filmes que ocupam as mentes durante o período de sono viraram assunto sério e científico. Para Freud, a grosso modo, os sonhos seriam a realização de desejos escondidos, desejos que, invariavelmente, não realizamos em decorrência das imposições sociais, quase sempre atreladas a impulsos sexuais ou violência. Não se trata, evidentemente, de negar a beleza do raciocínio freudiano, alicerce de nossa civilização, muito menos de negá-lo definitivamente, mas novas pesquisas começam a explicar, com precisão inédita, por que sonhamos. Trata-se, enfim, de interpretá-los mais modestamente.
Os sonhos, é o que se revela agora, talvez sejam apenas uma continuidade natural do dia, das horas que permanecemos acordados — dormir e estar acordado seriam condições semelhantes, uma na cama, de olhos fechados, outra na vigília, de olhos abertíssimos, mas sem grandes enigmas psicanalíticos. Um trabalho organizado por pesquisadores da universidade Roma Tre, da Itália, publicado na semana passada na prestigiada revista Royal Society Open Science, chegou a essa conclusão depois de usar inéditos mecanismos de inteligência artificial associados a algoritmos para cruzar informações de um banco de dados dos Estados Unidos com o registro de 24 000 relatos oníricos divididos por idades, gêneros, classes sociais, períodos históricos e temas, anotados entre 1930 e 2017. “Os sonhos podem ser mero reflexo de como nos sentimos durante o dia ou em determinado momento de nossa vida, e por isso sonhamos frequentemente com algo relacionado a um episódio traumático”, disse a VEJA Luca Maria Aiello, um dos autores do trabalho, pesquisador sênior do Nokia Bell Labs do Reino Unido. “O mundo onírico complementa a vida real. Por isso é importante prestar atenção aos sonhos, eles podem nos dar algumas informações valiosas.”
O lote de descobertas do trabalho é interessantíssimo ao definir pontos comuns em milhares de viagens na cama. Verificou-se, no levantamento, que mulheres têm sonhos menos violentos do que os homens. Dos 14 aos 17 anos há, invariavelmente, nos braços de Morfeu, interações sociais negativas e confrontação permanente. Dos 18 aos 25 anos, as interações passam a ser naturalmente mais dóceis e amigáveis. Veteranos da Guerra do Vietnã, expostos ao sangue do conflito, ainda sonham com agressões, com tiros e bombas. Os deficientes visuais, que usualmente têm o socorro diário e positivo de outras pessoas, sonham placidamente — e os totalmente cegos criam mais personagens imaginários do que os aptos. Esse pacote de experiências, para muito além da satisfação pessoal — a fascinante informação de que sonhos tendem a se repetir de uma pessoa para outra, em situações semelhantes de vida —, pode oferecer uso coletivo. “Como os sonhos refletem o que acontece na realidade, os eventos coletivos impactam a maneira como populações inteiras sonham”, afirma Aiello. Esse comportamento de rebanho já foi identificado em torno dos ataques terroristas de 11 de setembro e começa a ser investigado em relação à Covid-19. Há trabalhos de investigação na busca de algum padrão de resposta noturna ao medo do novo coronavírus. “Encontrar esse padrão, com a ajuda de modelos matemáticos, seria muito atraente para lidar com desafios globais com impacto na psique de todos, como são as guerras, as crises financeiras e as pandemias”, diz Aiello.
Os conflitos, ao alimentarem momentos de desconforto da realidade, são um poderoso fomento para os sonhos. No livro Sonhos no Terceiro Reich, a alemã Charlotte Beradt (1907-1986) foi atrás de uma indagação: seria ela a única a estar tendo pesadelos terríveis, misturando-os a personagens e leis estúpidas do nazismo? Charlote entrevistou 300 berlinenses entre 1933 e 1939 e descobriu que o horror era parte comum dos sonhos da população. Descobriu, enfim, que uma célebre frase de um oficial do Partido Nazista, Robert Ley, era uma boutade: “O único ser humano que ainda possui uma vida privada na Alemanha é aquele que está dormindo”. Os sonhos não autorizam privacidade. Tê-los é como estar acordado — e nem sempre são o inconfesso retrato de vontades disfarçadas. Convém deixar Freud um tantinho de lado e, quem sabe, ficar com o comentário melancólico das dores de amores de John Lennon e Paul McCartney no clássico e fácil rock A Hard Day’s Night, a “noite de um dia difícil”. Os sonhos costumam ser simples assim.
Publicado em VEJA de 16 de setembro de 2020, edição nº 2704