Desde o início de março, quando a epidemia do novo coronavírus paralisou os Estados Unidos, cada quinta-feira vem desencadeando ondas de choque: é nesse dia que o governo divulga os números do mercado de trabalho, e eles têm sido quase tão dramáticos quanto o balanço americano da pandemia (640 000 infectados e 31 000 mortos). Nas últimas quatro semanas — meros 28 dias —, 22 milhões de pessoas se registraram para receber auxílio-desemprego, ou seja, foram demitidas. O total de desempregados pode ser ainda maior, pois o sistema de processamento de dados do Departamento do Trabalho não foi projetado para um solavanco tão brusco da economia e os pedidos estão sendo analisados com lentidão.
Trata-se do maior contingente de americanos sem ocupação desde a traumática Grande Depressão dos anos 1930, um buraco que da noite para o dia tragou onze anos consecutivos de aumento de vagas e, junto, derreteu um dos mais vistosos trunfos de Donald Trump na corrida para a reeleição, o índice de desemprego na faixa dos 3,5% (agora se aproxima dos 15%). “Estamos saindo do mais baixo desemprego em meio século para um patamar excepcionalmente elevado em velocidade alarmante”, constatou Jerome Powell, presidente do Fed, o banco central americano, em conferência a investidores.
A crise que afeta os Estados Unidos está pondo de joelhos quase todos os países. A diferença lá, em relação à multidão de desempregados, é a finíssima rede de proteção social estendida por um Estado que, historicamente, se esmera em ter a presença mais discreta possível na vida da população. Demitir, nos Estados Unidos, é um ato simples e indolor para quem demite — daí o turbilhão de desocupados. Na Europa, ao contrário, onde o Estado de bem-estar social ainda predomina, os governos vêm se esforçando para evitar as dispensas. Reino Unido e França vão pagar 80% do salário nas empresas com problema de caixa. Holanda e Portugal optaram por um programa semelhante. Itália e Grécia foram ainda mais longe e proibiram cortes no período de emergência, uma providência impensável no sistema americano.
Como quase 80% dos postos de trabalho nos Estados Unidos se concentram no setor de serviços, mais sensível às marés da economia, o freio de agora também retesou a renda de três quartos dos empregados que ganham por hora trabalhada. De novo: se o movimento cai, também diminuem a jornada e o salário no fim do mês. Simples assim. No varejo, um dos motores da economia, houve contração de 8,7% em março, a maior da história. A situação é particularmente grave na indústria do turismo, em que ao menos 15 milhões de empregos estão ameaçados. Em Las Vegas, capital dos cassinos, e Orlando, sede dos parques temáticos da Disney e da Universal, uma em cada três vagas pode evaporar. Neste que seria em épocas normais o início da alta temporada, a ocupação da rede hoteleira desabou 70% em comparação com o mesmo período de 2019. “A combinação de epidemia com crise social não acontecia desde a gripe espanhola, há 100 anos. Ninguém sabe prever quanto tempo levará até a recuperação”, diz David Card, da Universidade da Califórnia, em Berkeley.
Em consequência do desemprego galopante, a nação mais rica do mundo tem visto pipocar filas intermináveis nos postos de Food Stamps, um resquício da Grande Depressão que supre os mais pobres dos pobres com alimentos básicos. Despreparado para a explosão da demanda, o órgão governamental tem feito apelos por doações, com sucesso — Jeff Bezos, o bilionário dono da Amazon, contribuiu com 100 milhões de dólares. A súbita queda no padrão de vida dos trabalhadores traz um sério e pouco usual questionamento sobre a falta de proteção social nos Estados Unidos. O tema frequentou a campanha de vários pré-candidatos democratas à Presidência e o virtual escolhido, Joe Biden, também resolveu abraçá-lo, ainda que com reservas. Para piorar a situação deteriorada pelo novo coronavírus, o país não possui uma rede de saúde pública universal, e planos de saúde em geral fazem parte do pacote oferecido pelo empregador. Diante das demissões em massa, calcula-se que, em plena pandemia, 12 milhões perderão a cobertura médica.
A facilidade com que empregados são demitidos tem sua contrapartida no outro lado da moeda: admitir é igualmente simples e indolor. Com 328 milhões de habitantes e PIB de 20 trilhões de dólares, os Estados Unidos respondem por um quarto do consumo das famílias do planeta e, apesar do nariz torcido de Donald Trump, mantêm vinte acordos de livre-comércio com o resto do mundo, movimentando uma economia dinâmica vista como o principal antídoto para a crise atual. “É o país com melhores chances de combater uma crise dessas proporções”, afirma Nicholas Bloom, economista da Universidade de Stanford. Os próximos meses — e os próximos índices de emprego — dirão se as oportunidades foram bem aproveitadas.
Publicado em VEJA de 22 de abril de 2020, edição nº 2683