A epopeia para buscar bebês de barriga de aluguel na pandemia
Com o relaxamento das restrições a viagens, pais de crianças geradas na Europa comemoram, com elas no colo, o fim de meses de desespero
Como se não bastassem todos os perrengues que a quarentena impôs à humanidade, um grupo de pais ao redor do mundo teve de enfrentar um drama extra: o de não poder acompanhar o parto do filho e, depois de nascido, não ter como levá-lo para casa. Bebês gerados em barriga de aluguel — o processo em que uma mulher é contratada para ceder o útero aos progenitores de embriões por meio de inseminação artificial — vieram ao mundo na Ucrânia, Geórgia, Estados Unidos e outros países onde a prática é permitida em plena disseminação da pandemia, quando fronteiras se fecharam e aviões deixaram de voar. De um lado, berçários e até hotéis tiveram de acomodar um número incomum de recém-nascidos. De outro, pais angustiados buscavam meios de cruzar o mundo para pegar seus rebentos no colo. “Os últimos meses foram uma espera sem fim”, diz a advogada Renata Mofsovich, de São Paulo, orgulhosa mamãe de gêmeas nascidas em Kiev, capital da Ucrânia.
Renata e o marido, o engenheiro Leandro Mofsovich, passaram por sete anos de tratamentos frustrados antes de optar pela barriga de aluguel na Ucrânia, atualmente o país mais requisitado para o procedimento. “Um médico disse que minha chance de ser mãe era igual à de alcançar o topo do Everest. Aquilo me destruiu, foi um soco no estômago”, conta Renata. No fim de 2019, a implantação dos embriões no útero de uma mulher ucraniana deu certo e começou então a espera e os preparativos para a chegada das gêmeas. Passagens compradas para 20 de junho, bem antes do parto, previsto para 5 de julho, vieram a quarentena e a ansiedade. Renata e o marido levaram 22 horas para chegar a Kiev e entraram em isolamento obrigatório de quatorze dias. “Tivemos de baixar um aplicativo, todo em ucraniano, que monitorava nossos passos. Um dia subi no terraço do prédio para tirar uma foto e o aparelho não parava de apitar”, conta Renata. As pequenas Esther e Joana nasceram com três dias de antecedência, ainda na quarentena. Para poder sair, o casal passou por uma bateria de exames. O de Renata deu uma alteração e só o pai pôde ver o parto. “Fiquei chorando sozinha no apartamento, inconsolável, por dois dias. Enfim pude abraçá-las na porta do hospital e foi uma emoção indescritível”, diz Renata.
Emprestar o útero para gestar bebês de desconhecidos em troca de compensação financeira é proibido na maioria dos países, por questões morais e denúncias de exploração de mulheres. No Brasil, o empréstimo só pode ser gratuito e por parentas ou amigas próximas do casal. Desde que as indianas foram proibidas de ceder o útero a estrangeiros, em 2019, o Leste Europeu se tornou a meca das barrigas de aluguel. Lá o custo do procedimento fica na faixa de 40 000 euros (240 000 reais), três vezes menos do que nos Estados Unidos. O casal Mofsovich diz que gastou 1 milhão de reais desde o início do tratamento.
No início de maio, a clínica BioTexCom, de Kiev, divulgou um vídeo no qual dezenas de bebês apareciam alojados em um hotel — falou-se em até 100 recém-nascidos nessa situação. O objetivo era mostrar que os pequenos estavam bem cuidados e, principalmente, chamar a atenção das autoridades para que facilitassem o acesso dos pais. “Ter um filho foi a maior realização de nossas vidas, mas o que se seguiu foi um pesadelo”, conta o espanhol Sergio Aznar, que entrou na Ucrânia com a mulher, Maria Luz Marin, ainda em março, dias antes do fechamento das fronteiras, e só conseguiu voltar para casa, em Murcia, dois meses depois. Os americanos Darlene e Chris Straub passaram por uma epopeia: voaram para Holanda, Suécia e, por fim, Minsk, capital da Bielorrússia. Lá alugaram um carro e percorreram 530 quilômetros até a fronteira ucraniana, que atravessaram a pé, com malas e carrinho de bebê, antes de dirigir outro tanto até Kiev.
A embaixada brasileira na Ucrânia informou a VEJA que o governo agora dispensa a quarentena para pessoas que, ao chegar, testem negativo para o novo coronavírus. A pandemia está controlada no país, com mais de 60 000 casos e 1 500 mortes. A BioTexCom garantiu que todos os seus bebês já foram entregues aos pais, mas os voos seguem reduzidos e a pandemia atrasa horrores os processos burocráticos. Renata e a família ainda passarão algumas semanas em Kiev — serão dois meses ao todo. “Aquele médico estava certo: ser mãe foi, de fato, como alcançar o topo do Everest”, diz Renata, aliviada e feliz. Quem já passou pela experiência sabe: isso é só o começo.
Publicado em VEJA de 5 de agosto de 2020, edição nº 2698