Não é de hoje que a Rússia é lembrada por suas violentas e não tão discretas operações de inteligência. Seja nas telas de Hollywood ou nos quadrinhos, os russos sempre estiveram presentes no imaginário ocidental como os “vilões” da história, prontos para espionar seus inimigos. E não é para menos: desde a fundação da União Soviética (URSS) em 1922, milhares de assassinatos, ataques e operações de espionagem foram executadas a mando dos poderosos descendentes dos czares. Até o hoje o governo de Vladimir Putin ainda comanda uma política externa truculenta e inclemente.
Há décadas, espiões russos – e, antes deles, soviéticos – são enviados aos Estados Unidos com o objetivo de coletar informações úteis sobre políticos e outras figuras proeminentes de Washington. Foi o que aconteceu com o alemão Albert Dittrich, hoje cidadão americano de 67 anos que responde pelo nome de Jack Barsky.
Nascido na antiga Alemanha Oriental, Dittrich foi recrutado pela organização de serviços secretos da URSS na década de 70, quando terminava seu curso universitário de químico, e enviado para Moscou para receber treinamento. O alemão foi preparado por meses para se infiltrar no mundo político de Washington e todos os registros de sua identidade anterior apagados. Deixou dois filhos em seu país natal e ninguém de sua família sabia de seu paradeiro.
“Fui treinado por um único funcionário da KGB que me ensinou como agir e falar como um verdadeiro cidadão americano”, contou em entrevista a VEJA. “Minha língua materna é alemão, mas hoje falo com sotaque americano por conta do treinamento”.
Ele desembarcou em Nova York em 1978, aos 29 anos, com um passaporte canadense falso. Depois de um ano assumiu a identidade de Jack Barsky, um americano de 10 anos que morreu em 1955.
Nos Estados Unidos, o alemão atuou como “agente adormecido”, ou seja, um espião que é enviado a um país não para realizar uma missão imediata, mas aguardar até ser ativado. Trabalhou nos primeiros anos como entregador, circulando por áreas exclusivas de Manhattan, mas eventualmente estudou Ciência da Computação e conseguiu um emprego em uma companhia de convênios médicos.
Como espião, o principal objetivo de Barsky era identificar possíveis recrutas para a KGB, fazer relatórios sobre a situação política interna dos Estados Unidos e tentar se infiltrar entre nomes proeminentes da sociedade e política americana. “A URSS estava interessada em descobrir o que acontecia na Casa Branca e quais eram as ideais disseminadas pelos conselheiros do presidente, por isso pediram que eu me infiltrasse entre intelectuais e professores universitários”, diz. “Mas não fui muito bem-sucedido em minhas tarefas, pois não consegui me infiltrar ou fazer amizade com essas pessoas”.
O alemão afirma que seu papel era principalmente de recolhimento de dados. “Recebi um pouco de treinamento de defesa pessoal, mas nunca estive envolvido em missões violentas”, conta. “Nunca sequer peguei em uma arma”.
ASSINE VEJA
Clique e AssineBarsky confessa, porém, que foi envolvido em uma missão de assassinato sem saber. “Em 1982 fui enviado à Califórnia para procurar o também ex-agente da KGB Nikolai Khokhlov que havia desertado e estava colaborando com os Estados Unidos”, conta. “Eu encontrei o endereço e telefone dele e passei para a KGB, sem saber para que os dados seriam usados”.
Posteriormente, o alemão descobriu que a agência soviética planejava a morte de Khokhlov por sua traição. O ex-espião, porém, morreu de causas naturais alguns anos depois e nunca foi capturado pela KGB.
Nos Estados Unidos, Barsky ainda fez um pouco de espionagem industrial, roubando softwares da empresa onde trabalhava e enviando o material, em microfilme, para Moscou. Toda a comunicação com os demais agentes da KGB na URSS era feita por transmissões de rádio de ondas curtas.
“Muitas coisas mudaram na espionagem desde que deixei de ser agente, mas as transmissões por rádio continuam sendo a forma mais segura de se comunicar com a base, pois são mais difíceis de interceptar”, afirma Barsky. “Mas houve uma grande mudança no método russo para coletar dados, recrutar pessoas especializadas e até no modo de treinar os agentes”.
Após alguns anos nos Estados Unidos, o agente se casou e teve uma filha. Em 1988, dez anos após ter chegado ao país, Barsky recebeu a notícia de que deveria voltar a Moscou, pois sua identidade falsa estava ameaçada e ele corria risco de ser descoberto pelo FBI. O alemão, porém, não queria mais retornar, pois já havia formado uma família em solo americano.
Desertores na URSS costumavam ser tratados com violência – até hoje agentes duplos ou oponentes de Vladimir Putin são ameaçados de morte e até vítimas de atentados. Barsky temia por sua vida se decidisse permanecer nos Estados Unidos e largar a KGB, por isso decidiu forjar um diagnóstico médico que o livrasse da obrigação de retornar à URSS.
O agente enviou uma carta aos seus superiores afirmando falsamente que havia contraído Aids. Na época os Estados Unidos viviam uma epidemia da doença e os soviéticos temiam que o vírus também pudesse se espalhar por seu território. A estratégia deu certo e Barsky vive até hoje em solo americano.
Porém, sua identidade de ex-espião foi descoberta pelos serviços secretos americanos em 1992, quando um desertor da KGB entregou ao FBI uma série de documentos confidenciais sobre os agentes soviéticos que atuavam nos Estados Unidos. Barsky foi preso e confessou seus crimes, mas trocou a liberdade por informações confidenciais sobre a URSS.
O espião teve sorte e não só foi autorizado a continuar morando nos Estados Unidos como recebeu ajuda do FBI para conseguir um passaporte americano – e ainda permanecer utilizando a identidade de Barsky. O alemão vive até hoje com o nome de Jake Barsky em Nova Jersey, onde mora com a esposa e filhos. Há quatro anos reencontrou sua família na Alemanha, que não recebia notícias suas desde a década de 70.