A obra póstuma de Niemeyer em Leipzig, na Alemanha
Uma cafeteria dentro de um complexo industrial recupera a mais celebrada e difícil forma arquitetônica, a esfera
O historiador Giorgio Vasari (1511-1574), o primeiríssimo biógrafo de artistas do Renascimento, revelou que, no século XIV, o papa Bento XI teria solicitado amostras de pintores da Itália para decidir quem seria digno de criar afrescos para a Basílica de São Pedro, no Vaticano. Um assistente do pontífice foi designado para visitar o ateliê florentino de Giotto di Bandone (1267-1337), que simplesmente rabiscou um círculo vermelho perfeito, a mão livre. Foi escolhido. Na arquitetura, uma esfera, a versão tridimensional da circunferência, tem igual apelo. Um prédio perfeitamente redondo é uma façanha do ponto de vista da engenharia e fascinante ao remeter, em sua cabal semelhança, à forma do planeta em que vivemos.
A sublime geometria ganhará, nas próximas semanas, um novíssimo exemplar — uma “bola” projetada por ninguém menos que Oscar Niemeyer (1907-2012), o modernista brasileiro das formas curvas, que, ao definir seu traço, escreveu: “Não é o ângulo reto que me atrai, nem a linha reta, dura, inflexível criada pelo homem; o que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro no curso sinuoso dos nossos rios, nas nuvens do céu, no corpo da mulher preferida”. Em Leipzig, na Alemanha, um projeto póstumo do construtor de Brasília ganha acabamentos finais. A “esfera Niemeyer”, como já vem sendo chamada, pousa delicadamente no topo de uma fábrica de tijolinhos vermelhos do século XIX. É uma cafeteria, bar e sala de descanso em um complexo industrial de um par de empresas fabricantes de bondes e guindastes ferroviários. O projeto, de 2011, um dos últimos de Niemeyer, secundado pelo arquiteto e urbanista Jair Valera, parceiro dos derradeiros anos, nasceu de um singelo bilhete do dono das indústrias, Ludwig Koehne. Depois de conhecer as obras do brasileiro em Brasília, Rio e Niterói, em 2007, especialmente a Catedral Metropolitana do Distrito Federal, a Casa das Canoas e o Museu de Arte Contemporânea, o alemão anunciou a vontade de erguer uma construção que permitisse “ser vista de longe e que, de dentro, oferecesse um lindo panorama da cidade”.
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Clique e AssineDo casamento dessas duas ambições, Niemeyer pensou a edificação. Com 12 metros de diâmetro, é um prodígio de engenharia que, de algum modo, ecoa os exercícios matemáticos de Joaquim Cardozo (1897-1978), o calculista, poeta e pensador que rompeu todas as normas tradicionais — e, ao elaborar uma trama de aço a costurar as estruturas de concreto, garantiu as belas e improváveis tangentes da cúpula invertida do Congresso no Planalto Central. A esfera de Leipzig nasceu de cinquenta moldes de madeira depois cobertos por cimento. Outro feito são as janelas de vidro de cristal líquido, como o das telas de smartphones, encomendadas à Merck. O segredo: a modulação exata da entrada de luz solar com a translucidez necessária. Com vidros normais, seria preciso uma tonalidade muito escura, como se fossem óculos de sol. “Com a tecnologia, em menos de um segundo alternamos a passagem de luz de 50% para 2%, fundamental para reduzir o consumo de energia e ar condicionado”, diz Koehne.
Houve ainda outro desafio. Uma das grandes dificuldades seria pousar a esfera em cima da fragilidade do antigo prédio centenário. O inventivo truque foi construir uma base de ferro e aço, dentro da qual há escada e elevador, de modo a sustentar a construção — que, de maneira sutil, delicada mesmo, fica a 2 centímetros de tocar os tijolos originais. “É uma beleza”, resume o arquiteto paulistano Eduardo Longo, ele próprio autor de um pequeno clássico urbano, a “Casa Bola”, de 1979 — que, de longe, lembra o trabalho de Niemeyer. Apenas lembra, como ressalva o próprio Longo, a começar pelo tamanho (a residência geodésica de São Paulo tem somente 8 metros de diâmetro). “Quando se comparam os dois trabalhos, o meu parece uma singela maquete”, diz Longo, para quem o exercício esférico vai muito além dos sonhos artísticos. “Uma esfera é o volume arquitetônico que exige menos material de superfície para maior volume interno”, resume. Em outras palavras: em obras de mesma dimensão, há mais espaço dentro de uma esfera do que de um cubo.
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São lições que Niemeyer dominava, intuitivamente, e que transportava para seus desenhos impossíveis (e, em alguns casos, difíceis de habitar e pouco funcionais). Em entrevista a VEJA, em 2009, ele disse ter havido sempre um único objetivo em sua carreira profissional, “a arquitetura de fantasia”, surpreendente. “A ideia é que o sujeito pare e se espante”, resumiu. É o que acontece em Brasília, sem dúvida, e também em Leipzig — e não apenas por ser um Niemeyer post-mortem (o prédio da IBM em Chicago, de Mies van der Rohe, também foi finalizado quatro anos depois da morte do arquiteto; a igreja Firminy, clássico francês de Le Corbusier, só veio ao mundo 41 anos depois do funeral do gênio suíço). A bolota é bonita, simples assim, sobretudo ao contrastar com a paisagem ocre e fabril, como uma jabuticaba alva a brotar do caule seco. E é extraordinária como resultado do engenho humano. No primeiro desenho enviado a Koehne, rabisco trêmulo, Niemeyer anotou as elevações laterais e as seções transversais. “Já estava tudo lá, a torre como um eixo de sustentação, a esfera com dois níveis — exatamente como aparece aqui, agora”, diz Koehne. Tal qual o círculo de Giotto que encantou o papa Bento XI.
Publicado em VEJA de 24 de junho de 2020, edição nº 2692