A pandemia expõe e agrava as desigualdades sociais no planeta
O coronavírus ceifou muito mais vidas e tirou muito mais empregos dos pobres e vulneráveis — um fosso visível inclusive nos países ricos
Desde que o mundo é mundo, uns têm mais e outros têm menos, e a parcela dos que têm menos é infinitamente maior. O desnível fica mais ou menos exposto conforme a riqueza de cada país e vem à tona, com toda a sua carga de injustiça e sofrimento, cada vez que um desastre desaba em uma população e o grosso da conta recai justamente sobre sua fatia vulnerável. A pandemia de agora, planetária e simultânea, abriu uma janela inédita para a desigualdade social, defeito atávico da humanidade. O novo coronavírus ataca sem distinção, mas a imensa parte das pessoas infectadas será aquela que não tem recursos para fugir de aglomerações, receber salário trabalhando em casa e prover a despensa com compras on-line. Uma parcela dos que se contaminaram vai morrer, mas, na lista de fatalidades, a maioria será gente que só chegou a uma UTI, quando chegou, em algum precário hospital da rede pública. A paralisação das atividades atingiu as empresas em geral, mas a enorme massa de desempregados é composta principalmente de mão de obra menos qualificada e mais mal remunerada. “A desigualdade torna a sociedade ainda mais despreparada para lidar tanto com a pandemia quanto com a recessão que ela desencadeou”, diz o Nobel de economia Amartya Sen, professor da Universidade Harvard.
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Clique e AssineAlém de expor e agravar a desigualdade, a crise que mergulhou 2020 em um mundo novo deixou mais claro do que nunca que o fosso também é fundo nos países ricos. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, morrem quatro vezes mais negros do que brancos de Covid-19 não por causa de fatores genéticos, mas devido às piores condições de vida (veja no quadro abaixo). Entre a população britânica, as fatalidades nas comunidades de imigrantes asiáticos são o dobro da média geral. Os municípios americanos de maioria negra concentram 58% das mortes no país. Dois terços dos hispânicos, como são chamados os descendentes de latino-americanos, ou estão desempregados, ou tiveram a renda drasticamente reduzida. Parte dos 150 000 sem-teto da Califórnia foi acomodada em avenidas com lugares demarcados no chão. Em Paris, o subúrbio de Seine-Saint-Denis, onde um em cada três moradores vive abaixo da linha de pobreza, registrou 62% mais mortes do que o normal para o mês de março. A causa, evidentemente, é o novo coronavírus — lá se encontra o menor número de médicos per capita da França.
Na América Latina, onde ficam oito dos vinte países mais desiguais do mundo, e, nesse time, o Brasil está sempre no topo, a disseminação do vírus se dá em conjuntura por si só explosiva: enquanto 3% da população está na faixa de alta renda, três quartos se situam nas classes baixa ou média baixa. A concentração de recursos se reflete no mercado de trabalho, que tem 60% de sua força na informalidade — um gigantesco contingente que se viu sem amparo quando a pandemia parou as economias. A OCDE, organização dos países avançados, calcula que 22 milhões de latino-americanos mergulhem na miséria se confirmadas as estimativas de queda de 5% na renda média da região. A privação, é claro, se estende a outros cantos do globo assolados pela desigualdade. Na África do Sul, 9 milhões de crianças estão sem alimentação regular desde o fechamento das escolas — uma questão que permeia os países menos desenvolvidos, mas que a pandemia, sempre ela, também fez aflorar nos Estados Unidos. Isso mesmo: na nação mais rica do mundo, 30 milhões de crianças deixaram de se beneficiar de um programa de almoço na escola de graça ou a baixo custo.
Estudo da ONU em parceria com a King’s College, de Londres, estima que a recessão trazida pelo novo coronavírus possa anular trinta anos de queda contínua da pobreza no mundo, ao empurrar 500 milhões de pessoas para a penúria. “É um tsunami de miséria”, alerta o economista Andy Sumner, coautor da pesquisa. Outro levantamento da ONU calcula em 265 milhões o número de pessoas que possam vir a passar fome em futuro próximo, mais do que o dobro de 2019, o saudoso ano em que ainda se achava que não ter nada para comer caminhava para ser obstáculo vencido. Sempre por culpa dos efeitos colaterais da Covid-19, o Banco Mundial prevê que o índice de Gini, usado para medir a desigualdade social, suba até 1% em todo o planeta, em um movimento sincronizado sem precedentes capaz de afundar entre 40 milhões e 60 milhões de pessoas na extrema pobreza. “O vírus é perigoso para ricos e pobres, mas o choque econômico que ele produz é muito pior na base da pirâmide”, diz Torsten Bell, da Resolution Foundation, entidade voltada para políticas públicas sediada em Londres.
A maioria dos especialistas considera que existem recursos à mão para reduzir os impactos sociais da pandemia e, por tabela, a desigualdade em geral — um ponto positivo que, insistem, não pode ser desperdiçado. “Esta crise ilustra tanto a violência da desigualdade quanto a necessidade de um sistema econômico diferente”, diz o francês Thomas Piketty, autor de O Capital no Século XXI, que defende um novo sistema tributário que taxe os mais ricos e use os recursos para sustentar uma rede de proteção social sólida, capaz de prevenir o caos em tempos adversos. Um plano de crescimento conjunto da França e Alemanha tem como ponta de lança o desenvolvimento sustentável, através de um projeto de 500 bilhões de euros financiado pela taxação da emissão de gases do efeito estufa para incentivar tecnologias verdes.
Outra providência que ganha força no mundo é a renda mínima básica garantida pelo governo a todo e qualquer cidadão. A distribuição de dinheiro e alimentos nesses moldes já está sendo feita em 108 países, em caráter temporário. “Em circunstâncias tão adversas, a renda básica se mostrou crucial”, diz Lauren Graham, da Universidade de Joanesburgo. Bertrand Badie, professor de política social da Universidade Sciences Po, em Paris, recomenda a retomada urgente “da regulação do mercado, do multilateralismo e da solidariedade, três eixos abandonados do desenvolvimento”. As ideias estão aí, prontas para ser enlaçadas no esforço para sair do fundo do poço — e, se possível, emergir em um mundo melhor e um pouco mais justo.
Publicado em VEJA de 3 de junho de 2020, edição nº 2689