A ‘política do desespero’ que paira sobre EUA, França e Reino Unido
Governantes das três potências empacam na encruzilhada eleitoral imposta por populações descontentes que exigem mudanças
Em um movimento tectônico que lembra os roteiros distópicos em voga nos canais de streaming, três potências mundiais encaram, praticamente ao mesmo tempo, um fenômeno típico destes tempos polarizados: mandatários tradicionais de linha moderada, guardiões do status quo, se debatendo para não submergir — e perdendo a batalha — no mar revolto de uma nova era política. Na quinta-feira 4, o primeiro-ministro do Reino Unido, Rishi Sunak, assistiu ao colapso de seu Partido Conservador, que após quatorze anos no poder foi varrido pelo Partido Trabalhista de Keir Starmer e ameaçado de morte pela ascensão de uma legenda da direita barulhenta, Reform UK. A rejeição transborda para o outro lado do Canal da Mancha, na França, onde o presidente Emmanuel Macron tentará reverter no domingo, 7, a derrota fragorosa que sofreu no primeiro turno das eleições parlamentares. Atravessando o Atlântico, nos Estados Unidos, sucessivos abalos sacodem a candidatura à reeleição do presidente Joe Biden, que deu mostras do peso dos 81 anos em um debate com Donald Trump e, pressionado por analistas, eleitores e até aliados, cogita se retirar do páreo.
Encostados na parede pela patente fadiga dos eleitores com o sistema e as instituições políticas em vigor pelo menos desde o pós-guerra, os três apelaram para a estratégia de se antecipar ao desastre — só que, dessa vez, muito mais movidos pelo desespero do que por reais chances de reverter o quadro. Biden, que se submete ao escrutínio das urnas há mais de meio século e tem mais experiência do que os outros dois juntos, tomou a iniciativa de adiantar o primeiro debate com Trump para antes mesmo das convenções partidárias, na esperança de acalmar os receios em relação à sua idade e atrair o voto anti-Trump. Deu tudo errado: ele titubeou, divagou, se atrapalhou e forneceu mais munição para os descontentes que, cansados da mesmice, querem ver o circo pegar fogo — ainda que isso signifique colocar na Casa Branca alguém descompromissado com a verdade e condenado pela Justiça, entre outras deficiências. As últimas pesquisas saem do empate técnico e dão a Trump seis pontos de vantagem sobre Biden, com 75% dos entrevistados dizendo achar o atual presidente velho demais para o cargo.
Macron e Sunak decidiram antecipar as eleições legislativas, manobra que, nos velhos tempos, só era usada com a vitória certa — o exato oposto de agora, quando todos os indícios apontavam para a derrota. A convocação, nos dois casos, cheira a capitulação dos governantes perante o péssimo humor do público, que os culpa por não conseguirem endereçar desafios do século XXI, como o encarecimento do custo de vida no pós-pandemia, o preço cada vez mais inacessível dos imóveis, a perda de competitividade frente a novas potências — sobretudo a China —, a crise climática e, acima de tudo, a imigração ilegal. “O que se observa é uma grave crise de autoridade”, alerta Inderjeet Parmar, professor de política internacional na City University of London.
Macron conta com a rejeição ao Reagrupamento Nacional (RN), partido de origem francamente xenófoba e antissemita (traços amenizados nos últimos anos), para impor nova derrota à líder Marine Le Pen, sua adversária nas duas últimas eleições presidenciais. É aposta arriscadíssima: no primeiro turno, puxado pelo carisma do novato Jordan Bardella, o presidente da sigla, o RN obteve 33% dos votos, um recorde que levou franceses inconformados a protestar nas ruas de Paris. Em segundo ficou a aliança de esquerda Nova Frente Popular (NFP), com 28%, deixando o Renascimento de Macron em amargo terceiro lugar, com 20% — mais uma clara amostra do desgaste da política centrista. Em uma tentativa de conter o tsunâmi ultranacionalista, 219 candidatos desistiram de participar das disputas triangulares, como são chamados os escrutínios de segundo turno em que há três candidatos por vaga, para que os votos se concentrem nos nomes mais viáveis. Se a tática der certo, Macron passará seus próximos três anos de governo tendo de se equilibrar em precárias alianças na Assembleia Nacional. Se der errado, Bardella será o próximo primeiro-ministro, e o presidente se verá obrigado a dividir o poder com o inimigo. “A melhora na economia não foi capaz de acalmar as frustrações da França rural e desindustrializada”, explica Mathias Bernard, historiador e pesquisador da Universidade Clermont Auvergne.
No Reino Unido, o Partido Conservador de Rishi Sunak, outrora uma azeitada máquina eleitoral, sai desidratado dessa eleição. Cansados dos escândalos, da carestia, da estagnação econômica e da instabilidade desencadeada pelo Brexit, os britânicos deixaram claro seu repúdio a uma década e meia de conservadorismo, dando esmagadora vitória aos trabalhistas: 410 dos 650 assentos no Parlamento, contra 131 para os Tories. Mesmo sendo uma sigla da velha guarda, o Partido Trabalhista passou por uma repaginação desde que o pragmático Starmer assumiu a liderança e com essa nova postura atraiu o voto dos descontentes. Com uma novidade marcante: surfando a nova maré política, o Reform UK, liderado pelo populista de direita Nigel Farage, entra pela primeira vez em Westminster, com treze deputados.
A agitação que sacoleja três das principais potências do Ocidente terá consequências em todo o globo. Passadas as eleições, a ideologia e a força (ou fraqueza) dos governantes dos Estados Unidos, do Reino Unido e da França terão papel vital no andamento das tensões geopolíticas em curso, como a guerra da Rússia contra a Ucrânia, a batalha entre Israel e o Hamas e a hostilidade entre Taiwan e China. Também será crucial o envolvimento de Washington, Londres e Paris na regulação da inteligência artificial, que altera o mercado de trabalho de forma irreversível, e nas políticas voltadas para a transição para a economia de baixo carbono, um esforço que, segundo o Fórum Econômico Mundial, exigirá investimentos de 5 trilhões de dólares ao ano até 2030. O holofote mais brilhante estará voltado para os Estados Unidos, onde Trump ganha impulso — a Suprema Corte acaba de lhe dar imunidade parcial no período em que foi presidente, embaralhando as cartas de seus vários processos — e os democratas esperneiam buscando formas de reverter os prejuízos da candidatura Biden. De eleição em eleição, ganha força a impressão de que, em matéria de política, nada mais será como antes.
Publicado em VEJA de 5 de julho de 2024, edição nº 2900