A tentativa frustrada de Putin de virar o jogo na guerra com Ucrânia
Plano de anexar quatro regiões ucranianas não deu certo e seus parceiros naturais, China e Índia, ficaram ainda mais ressabiados
Em uma sequência de medidas impactantes e frases de efeito destinadas a reforçar interna e externamente a combalida imagem da Rússia na guerra da Ucrânia, o presidente Vladimir Putin, em questão de dias, mobilizou 300 000 reservistas para a frente de combate e, apoiando-se em referendos manipulados, anexou quatro pedaços do território ucraniano ocupado por suas forças. De quebra, pintou com tintas ainda mais fortes o ilusório cenário em que o Ocidente — o “inimigo”, pronunciado com todas as letras — quer aniquilar a Rússia e quem quer que não esteja sob seu controle e mencionou o uso de armas nucleares. Cartas postas, preparou-se para o xeque-mate, chamando o governo de Kiev para a mesa de negociações. Faltou, porém, combinar com o outro lado.
Mal anunciada a anexação de Donetsk, Luhansk, Kherson e Zaporizhzhia, as tropas ucranianas obtiveram avanços importantes, que fizeram o invasor recuar nas três primeiras (na quarta, a ocupação é de 30% do território). Entre outras ofensivas, os ucranianos entraram na cidade de Lyman, um centro de suprimentos via ferrovias, e puseram para correr os ocupantes antes mesmo de os poucos moradores que não fugiram serem informados que ela agora faria parte da Rússia — a típica anexação que foi sem nunca ter sido. Diante da incerteza da situação militar, a junção forçada das quatro regiões ao território russo sequer conta com fronteiras definidas. “Vamos continuar consultando a população”, tangenciou o porta-voz do presidente, Dmitry Peskov. Levada ao Conselho de Segurança da ONU, uma condenação da manobra de Putin foi bloqueada pela Rússia, evidentemente, e quatro países se abstiveram: China, Índia, Gabão e Brasil — este, segundo o embaixador Ronaldo Costa Filho, por uma questão semântica: o texto “não favorece um ambiente para uma solução do conflito”.
O recrutamento, por sua vez, além de caótico e impopular, teve o efeito de conduzir a guerra para dentro dos lares russos. A convocação de reservistas gerou pânico e uma fuga em massa de homens em condições de lutar, levando o Parlamento a aprovar sentenças de prisão para recrutados que não se apresentem. Em uma província no extremo oriente do país, dos milhares que se apresentaram, metade foi dispensada por inexperiência, idade avançada e doenças, resultando na demissão do comissário militar — notícia divulgada pela própria e controladíssima imprensa local. Ainda por cima, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, esnobou o colega russo assinando um decreto que declara ser “impossível” negociar a paz agora. De fato, os últimos passos de Putin criaram um impasse. De um lado, Kiev afirma que só conversa sobre acordos depois que a tal anexação for anulada. De outro, o Parlamento russo baixou uma lei há quase dez anos proibindo a devolução de qualquer território que o país venha a abocanhar — o ponto de discórdia, na época, era a Crimeia, pedaço da Ucrânia anexado em 2014.
Analistas consideram que os atos e palavras de Putin na última semana têm o objetivo paralelo de colocar a Rússia no contexto de uma nova coalizão global de forças antiocidentais, que ele qualifica de “movimento anticolonial” e almeja que seja liderado por Moscou. Os dois aliados naturais, China e Índia, no entanto, evitam se comprometer, ressabiados com a guerra encalacrada que entra em seu sétimo mês — e também com as intenções do suposto parceiro. “Enquanto Putin tenta justificar a invasão com ameaças que vão da expansão da Otan à ação de imaginários nazistas ucranianos, fica cada vez mais óbvio que se trata de uma agressão à moda antiga, com resquícios imperiais”, analisa Peter Dickinson, pesquisador do Atlantic Council.
O presidente russo sabe que seu país, hoje um pária na maior parte do mundo, não tem condições de se insurgir, isolado, contra o resto do planeta. Nem Índia, nem China, no entanto, parecem convencidos de que Putin sairá mais poderoso do conflito ucraniano e, em consequência, racionam seu apoio. Embora Pequim tenha aproveitado a situação para comprar commodities russas mais barato, as empresas chinesas têm tomado cuidado para não desobedecer abertamente as sanções do Ocidente contra o comércio com a Rússia, temendo represálias, e o presidente Xi Jinping, a poucos dias do Congresso do Partido Comunista, que lhe garantirá mais um mandato, evita meter a mão nessa cumbuca. Atitude semelhante vem adotando o primeiro-ministro indiano Narendra Modi, cujo país agora é o segundo maior comprador de petróleo russo depois da China. Seja para consumo interno, seja para firmar alianças internacionais, Putin precisa, mais do que nunca, de alguma contundente vitória na Ucrânia. Até agora, porém, ela lhe vem escapando entre os dedos.
Publicado em VEJA de 12 de outubro de 2022, edição nº 2810