Nos últimos anos, tornou-se comum a imagem de ruas tomadas de manifestantes convocados pelas redes sociais, em mobilizações populares sem lideranças definidas. Mesmo assim, a propagação do fenômeno em Cuba, no domingo 11, pegou todo mundo de surpresa. A perseguição de dissidentes na ilha é recorrente, desgastante e, muitas vezes, brutal, mas nem todo o aparato repressivo foi capaz de conter a insatisfação dos cubanos, fartos da falta de dinheiro, comida, remédios, energia elétrica e tudo o que é essencial. Os atos tiveram início em San Antonio de los Baños, a 30 quilômetros da capital, Havana, e em Santiago, com milhares de pessoas, sobretudo jovens, exigindo o fim dos apagões diários e vacinas contra a Covid-19. Ao todo, sessenta cidades registraram protestos, com viaturas policiais destruídas e uma loja estatal saqueada.
Em Havana, a violência da polícia não impediu que centenas de manifestantes cercassem o Capitólio Nacional, símbolo da cidade, entoando gritos nunca ouvidos antes de “abaixo a ditadura”, “liberdade” e “pátria e vida” — este, uma aberta subversão do slogan oficial, “pátria ou morte”. A repressão não demorou. Segundo a Anistia Internacional, ao menos 140 pessoas estão presas ou desaparecidas — uma blogueira dava entrevista ao vivo à TV espanhola quando a polícia bateu na porta de sua casa. Os abusos foram expostos através da hashtag #SOSCuba, que reuniu uma profusão de vídeos de espancamentos e prisões. O presidente Miguel Díaz-Canel foi à TV denunciar a “provocação sistêmica” de dissidentes manipulados pelos Estados Unidos com o intuito de causar “uma maciça explosão social” e atribuiu a crise econômica ao inimigo de sempre: o embargo comercial americano. De fato, a medida em vigor há mais de sessenta anos, embora não afete alimentos e remédios, dificulta muito as transações. Mas a má gestão da economia, aliada à paralisação do turismo no último ano e à intensificação dos apagões por falta de investimentos nas linhas de energia, contribuiu para piorar muito a vida dos cubanos. “A pandemia funcionou como gatilho para expressar a insatisfação represada”, diz Luis Martinez-Fernández, professor de história da University of Central Florida.
A ausência de turistas resultou em 4 bilhões de dólares a menos na debilitada economia de Cuba, onde o PIB registrou queda de 11% em 2020. Para reverter o cenário, o governo de Díaz-Canel unificou em janeiro o peso-turismo e o peso oficial, procurou compensar a consequente elevação dos preços de alimentos, bens e serviços com aumento de salários e pensões e liberou a abertura de pequenas empresas privadas. Mas a inflação disparou: segundo as projeções, ela pode chegar a 900% até o fim do ano.
A pandemia segue fora de controle. Com 1 600 mortes e quarentena rigorosa, Cuba foi menos assolada pelo vírus do que outros países da América Latina, mas a priorização do desenvolvimento de uma vacina sugou recursos e afetou a importação de remédios e insumos hospitalares. Não há leitos disponíveis e, segundo o Ministério da Saúde, 116 tipos de remédio estão em falta. “O Estado não consegue fornecer nem medicamentos simples, como antitérmicos”, diz Lillian Guerra, especialista em história cubana da Universidade da Flórida. Em sua explosão de insatisfação, algo que não ocorria desde 1994, quando a economia entrou em colapso pela perda dos subsídios soviéticos, os cubanos foram puxados pela primeira geração de jovens conectados à internet, liberada no país em 2018. No domingo da revolta, o governo cortou a conexão, depois reativada, mas com restrições. As ditaduras acham possível calar as pessoas desligando-as do mundo — mas não, as coisas pioram.
Publicado em VEJA de 21 de julho de 2021, edição nº 2747