O que muda para o Brasil com a vitória de Biden
Apesar de Bolsonaro publicamente insistir em esperar para ver se Trump vira o jogo na marra, o país se mexe para se ajustar ao novo cenário geopolítico
Declarado vencedor da eleição nos Estados Unidos, o democrata Joe Biden montou seu escritório de presidente eleito e arregaçou as mangas. Sem nenhuma cooperação do derrotado Donald Trump, ressalve-se — entrincheirado na Casa Branca, o republicano continua tuitando denúncias vazias de fraude, entrando com pedidos de recontagem (o que é esperado, já que muitas votações foram apertadíssimas) e dando ordens aos órgãos públicos para não cooperarem de forma alguma. Na cruzada para fazer da sua Casa Branca o oposto da de Trump, Biden já montou uma força-tarefa concentrada em baixar os deploráveis recordes americanos em casos confirmados e mortes pelo novo coronavírus. “Eu imploro, usem máscara”, declarou, deixando vazar que até cogitava torná-la obrigatória, uma ordem fora de seu alcance no país do livre-arbítrio. Também é provável que reative e até amplie a distribuição de cheques às famílias e os subsídios a negócios para reativar a economia. “Vamos reconstruir a classe média, que é a espinha dorsal da nação”, disse no discurso da vitória.
Outro movimento mais do que esperado é a reintegração dos Estados Unidos ao Acordo de Paris, que fixa metas internacionais para a redução da emissão de gases causadores do efeito estufa. Sustentabilidade é uma das bandeiras de Biden, como bem sabem os brasileiros familiarizados com a troca de farpas, nos últimos meses, entre o presidente eleito, que ameaça organizar um esforço global para financiar a preservação da Amazônia, e Jair Bolsonaro, abespinhado com o que considera interferência inadmissível nos assuntos pátrios. Parceiro de primeira hora da fórmula Trump de fazer política, e ainda confiante na judicialização dos votos, Bolsonaro adia o reconhecimento da vitória de Biden enquanto põe lenha — neste caso, só modo de falar — na fogueira ambiental. Na terça-feira 10, voltou ao assunto, belicosamente: “Apenas diplomacia não dá. Quando acabar a saliva, tem de ter pólvora”, esbravejou, numa declaração talhada para virar meme. Tentar antecipar como Biden e Bolsonaro vão se relacionar a partir de 20 de janeiro, dia da posse do americano, tem sido um dos exercícios mais praticados atualmente em Brasília.
No dia seguinte à aclamação de Biden, um domingo, Bolsonaro se reuniu com seus principais conselheiros para avaliar a situação. Os militares, que nunca acharam saudável o apego incondicional a Trump, propuseram ao presidente que divulgasse em suas redes sociais um comunicado reconhecendo a vitória do democrata. A ala ideológica foi contra. O tom subiu a ponto de, a certa altura, um ministro do primeiro grupo dizer (exageradamente) que Bolsonaro corria risco de sofrer impeachment por não reconhecer o poder do voto, enquanto outro o advertia de que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, signatário de uma nota de congratulações, já estava capitalizando o apoio ao americano. Em meio à batalha de versões e análises, Bolsonaro perguntou a sua equipe de assuntos internacionais qual era a chance, de zero a dez, de Trump reverter a derrota e ser reeleito. A surpreendente (e equivocada) resposta foi: “Sete”. Ele decidiu manter a esperança na virada.
Indo além da batalha judicial travada agora por Trump, o Planalto sustenta a expectativa de que o resultado vá parar na Suprema Corte — onde, em 2000, diante da ambiguidade de algumas apurações, o democrata Al Gore, vencedor nas urnas, perdeu a Presidência para George W. Bush. Nas contas dos assessores da Presidência, dos nove juízes, seis votariam a favor de Trump. Até agora, porém, não há nenhuma evidência concreta de fraude na eleição americana, nem motivo para o assunto ser examinado pelo topo da Justiça. Detalhe: em 2000, Bush havia vencido nas urnas que estavam sub judice. “É difícil provar irregularidades em uma margem de 53 000 votos na Pensilvânia e de 14 000 na Geórgia”, admite um conselheiro de Bolsonaro, citando os dois estados com resultados mais controvertidos.
Cada dia que passa torna-se mais evidente que Trump não vai ganhar nenhuma batalha judicial e deverá voltar mesmo para sua casa. Uma pesquisa da Reuters/Ipsos três dias depois da consagração de Biden mostra que 80% dos americanos reconhecem a legitimidade do resultado e só 3% ainda apostam na reeleição. Mesmo com a torcida para que algo inusitado ocorra, na terça-feira 10 os ministros-símbolo da ala ideológica, Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, e Ricardo Salles, do Meio Ambiente, participaram juntos de uma reunião previamente agendada com Keith Krach, subsecretário de Estado para crescimento econômico, energia e meio ambiente, e o embaixador americano em Brasília, Todd Chapman. Os dois homens de Trump sinalizaram que, seja quem for o ocupante da Casa Branca, a diplomacia entre os dois países seguirá de forma pragmática, embasada nos diversos interesses comuns.
Apesar de não terem jogado a toalha, integrantes do governo brasileiro começam a esboçar um plano B um tanto mirabolante, que contaria com Araújo, o chanceler que abomina temas caros a Biden, como multiculturalismo e acordos globais. Ocorre que em 2013, quando documentos secretos divulgados pelo ex-analista da CIA Edward Snowden revelaram que os serviços secretos americanos espionavam a presidente Dilma Rousseff, Araújo, que trabalhava na embaixada em Washington, chegou a ter contato com o vice-presidente Biden, encarregado por Barack Obama de pôr panos quentes no assunto. A ideia seria ele retomar esse contato. Outra proposta (digamos, excêntrica) teria partido de Salles, visto no exterior como o porta-voz das queimadas e do desmatamento: sugerir a Bolsonaro enviá-lo para um tête-à-tête sobre a Amazônia com a vice-presidente eleita, Kamala Harris (leia na pág. 62). “Temos de inverter a situação. Em vez de deixar os Estados Unidos pressionarem o Brasil, nós é que temos de pressioná-los, jogando a responsabilidade no colo do Biden”, arriscou um assessor palaciano.
Na avaliação de integrantes do governo de Bolsonaro, Biden presidente não significa que os Estados Unidos isolarão o Brasil, primeiro por causa do volume de investimentos americanos aqui, e também pelo fato de o país ter na China seu principal parceiro econômico — situação que Washington gostaria de reverter, sobretudo quando se aproxima a disputa, no ano que vem, pelo leilão da frequência 5G no país, ponto explosivo da guerra fria entre as duas potências que não deve arrefecer na gestão democrata. Nos bastidores, ressalta-se que os dois países continuam conversando e a relação é à prova de abalos. “O Brasil está entre as dez maiores economias do planeta e exporta para os Estados Unidos uma gama diversificada de produtos. Isso não mudará”, diz José Botafogo Gonçalves, embaixador e ministro da Indústria, do Comércio e do Turismo durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Até a volta dos Estados Unidos ao Acordo de Paris é vista em Brasília como uma possibilidade de aplainar arestas, uma vez que o Brasil continua signatário e Bolsonaro já sinalizou que assim permanecerá. “Na questão do meio ambiente, Biden pode ser até melhor do que Trump para o país”, avalia um ministro do governo. Afinal de contas, a descarbonização da economia prevista no acordo vai alavancar o mercado de combustíveis menos poluentes, um fator do qual o Brasil pode tirar grande vantagem. “A eleição de Biden sinaliza a perda de força do petróleo. Temos abundância eólica, solar e biocombustíveis. O país precisa se preparar para fazer a transição”, diz David Zylbersztajn, ex-diretor da Agência Nacional do Petróleo (ANP).
Conhecido pela simpatia e afabilidade, Biden tem experiência em política internacional e, ao contrário da maioria dos presidentes americanos, conhece as particularidades do Brasil, onde esteve duas vezes durante o governo Obama. Na primeira, em 2013, tentou viabilizar a venda de caças americanos para a FAB (não conseguiu) e chamou atenção em Brasília por anotar em um caderno todas as reclamações que ouviu de membros do governo. Poucos meses depois, enviou respostas a cada uma das questões levantadas. Em 2014, voltou para desarmar a crise desencadeada pelos documentos de Snowden, e dessa vez teve sucesso. “Felicitei Obama por ter um vice-presidente tão sedutor”, disse Dilma na época. “Aquele homem seria capaz até de vender gelo no Canadá.”
Por mais que se apresente como a antítese de Trump, Biden não fará o mundo voltar ao que era antes da ascensão do milionário que fez do confronto e da agressividade dois pilares do desempenho político — até porque os 72 milhões de americanos que votaram no republicano provam que seu populismo de direita permanece forte. Isto posto, não há dúvida de que o derretimento do lema “Os Estados Unidos em primeiro lugar” — que, para Biden, “só teve como resultado uns Estados Unidos sozinho” — vai mudar o rumo das relações internacionais. Do ponto de vista das questões de comportamento, espera-se uma liderança menos xenófoba e preconceituosa. Nas questões econômicas, um menor protecionismo — o que pode ser bom para o Brasil. “A diplomacia brasileira precisa restaurar sua capacidade única de construir pontes, alinhando o país às necessidades do século XXI”, diz Sérgio Amaral, embaixador do Brasil em Washington entre 2016 e 2019 e hoje conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais. Vive-se, enfim, um momento histórico: a maior economia do planeta vai mudar de rumo.
Colaborou Felipe Mendes
Publicado em VEJA de 18 de novembro de 2020, edição nº 2713