Ala progressista começa a se mexer contra o conservadorismo nos EUA
Depois de derrubar o direito ao aborto, a poderosa Suprema Corte americana desperta uma reação no país
Com a Suprema Corte aboletada na vantagem vermelha, a cor do Partido Republicano, obtida graças a três indicações de Donald Trump, um vagalhão conservador tomou conta do majestoso prédio de Washington nos últimos tempos. A onda, que impôs retrocessos em sequência a conquistas fundamentais e balizadoras da sociedade americana, alcançou o ápice quando o tribunal decidiu, por 5 a 4, revogar uma decisão tomada há meio século: a que garantia às mulheres o direito de interromper a gravidez. A marcha a ré no aborto, que representava um avanço espetacular, reverberou mundo afora e não para de colher desdobramentos, revelando sua face mais sombria.
Recentemente, uma menina de 10 anos que havia sido estuprada em Ohio, onde o aborto é proibido, precisou viajar a outro estado para não ter a vida dilacerada por uma maternidade tão traumática. O caso ganhou os holofotes nacionais por tratar-se de um espinhoso problema que se irradia por outros doze estados — eles vetam a decisão de parar uma gravidez mesmo quando a mulher é alvo de tamanha brutalidade. Até os abortos espontâneos, em que a mãe perde o bebê e necessita de procedimentos cirúrgicos ou medicamentos, vêm sendo colocados no escaninho dos assuntos impronunciáveis em áreas mais retrógradas. No ultraconservador Texas, esses atendimentos aguardam, em média, nove dias e mais da metade das pacientes encara infecções graves como nefasta consequência do descaso.
Um grupo da ala mais progressista do Partido Democrata, capitaneado pela deputada Alexandria Ocasio-Cortez, sentou-se no meio da rua bem em frente ao neoclássico edifício da Suprema Corte, na terça-feira 19, em protesto contra o rolo compressor que atropelou direito individual tão arduamente conquistado. AOC, como é conhecida, e os outros foram presos e logo soltos. Mas este freio de mão ao exercício da liberdade segue encrespando as águas cinzentas do lago de polarização que divide os Estados Unidos, como outras complexas questões. Antes de entrar em recesso, em 1º de julho, o bloco direitista do Supremo ainda reiterou o direito de os cidadãos andarem armados, cortou poderes da agência ambiental para reprimir emissões de carbono, permitiu atos religiosos em escolas e deu aos estados abertura inédita para definir regras eleitorais.
A Suprema Corte vermelha põe em risco um conjunto maior de históricas decisões apoiadas em uma interpretação elástica da Constituição, como o acesso à contracepção e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em relação a esses dois temas, os democratas se apressaram em apresentar projetos de lei ao Congresso, já temendo que tais direitos possam ser tosados. Em 19 de julho, a Câmara aprovou o texto que garante a união dos homossexuais, submetido ao Senado com chances de sucesso. Em 21 de julho, foi a vez de os parlamentares apreciarem o projeto de lei que protege o acesso à contracepção — este deve ser barrado pelos senadores. São todas iniciativas para tentar limitar o efeito dos martelos conservadores dos juízes. “A Corte tem usado argumentos inconsistentes para reinventar leis constitucionais a serviço do Partido Republicano”, avalia Michael Klarman, professor de história da lei na Universidade Harvard.
O poder descomunal exercido ultimamente pela Suprema Corte americana deriva de um sistema político que sempre funcionou bem à base de acordos e foi paralisado pela radicalização dos deputados e senadores republicanos, que inviabilizou discussões produtivas. Com o Legislativo entocado em trincheiras, o método tradicional de alinhar uma maioria na Câmara, conseguir 60 dos 100 votos no Senado para aprovar leis e finalizar o processo com a assinatura presidencial se tornou impraticável.
Restou aos políticos, então, acirrar controvérsias para mostrar serviço, em vez de achar saídas para enroscos cruciais, deslocando as grandes decisões para o colo dos tribunais, em posição de protagonismo. “A polarização nos Estados Unidos tornou as indicações presidenciais à Suprema Corte e as confirmações no Senado muito mais políticas”, explica Richard Fallon, autor de Law and Legitimacy in the Supreme Court. Segundo Fallon, quando a tarefa de desfazer nós legislativos recai sobre juízes, há risco de que eles se transformem em um terceiro poder não eleito e todo-poderoso, podendo aprofundar ainda mais a divisão dos Estados (agora muito menos) Unidos.
A construção da Suprema Corte de hoje foi rápida e surpreendente. Qual a chance de algum presidente de um mandato só emplacar três peças escolhidas a dedo no tabuleiro vitalício do tribunal? Pois dois juízes morreram, um decidiu se aposentar e Trump, ajudado por um Senado obediente às suas indicações, conseguiu o quase impossível. Na atual conformação, a Corte produziu mais decisões conservadoras do que em qualquer momento desde 1931. Isso ocorre porque a maioria de 6 a 3 quebra a tradicional divisão de 5 a 4 predominante nos últimos cinquenta anos e anula, em última análise, o “centrão”, nesse caso uma instituição do bem: alguns juízes que, sejam na origem conservadores ou progressistas, eventualmente oscilam de posição, abrindo espaço para surpresas nas votações. Pode-se considerar o presidente atual, John Roberts, da direita flexível, o derradeiro exemplar do “centrão”, mas ele sozinho não faz história — os outros cinco conservadores conseguem vencer sem ele, como aconteceu no caso do aborto.
Por mais que os estados americanos sempre tenham tido liberdade para redigir suas próprias leis, o grau de extremismo visto agora levanta o receio de uma ruptura que ameace o próprio conceito de nação, com levas vermelhas e azuis se mudando de lá para cá e se concentrando em redutos próprios, as bolhas ideológicas. “Podemos até, em situação extrema, chegar a um ponto semelhante ao existente na época da escravidão, quando os estados do Norte e do Sul levavam vidas independentes”, diz Michele Goodwin, professora de direito da Universidade da Califórnia. Outra possibilidade assustadora é que as decisões dos juízes passem a ser ignoradas, o que enfraqueceria o estado de direito.
Espelho do doloroso e cada dia mais profundo racha entre os americanos e do avanço de um conservadorismo intransigente, que agrada a uma parcela considerável da população e já independe de Trump para progredir, a Suprema Corte mostrou a que veio — e a imagem é perturbadora. Calcula-se que, mantida a aposentadoria voluntária, os conservadores tenham cacife para dominar as decisões até a década de 2050. “Prevejo um futuro tempestuoso para a Corte e para a política americana”, afirma Charles Cameron, professor de política da Universidade Princeton. Está cada vez mais difícil salvar os Estados Unidos de si mesmos.
Publicado em VEJA de 3 de agosto de 2022, edição nº 2800