Para sair de casa, as mulheres sauditas ainda têm de vestir a longa e negra abaia por cima da roupa. Mas em junho ganharam, enfim, permissão para tirar carteira de motorista e pegar o volante dos carros. Também ganharam espaço nos estádios de futebol. Podem ir ao cinema — as primeiríssimas salas foram reinauguradas depois de 35 anos. As mais corajosas até passeiam no shopping de rosto descoberto, desafiando a irritante polícia religiosa, que teve seu poder enfraquecido. A Arábia Saudita, definitivamente, não é mais a mesma. O vento de modernidade varreu o deserto quando, no ano passado, Mohammed bin Salman, um dos muitos príncipes da família real, atropelou a ordem de sucessão e, aos 32 anos, tornou-se herdeiro do trono e virtual governante em nome do pai, o rei Salman.
MBS, como é conhecido, tem um plano, “Visão 2030”, que abre a sociedade a regras menos anacrônicas, abre o país a investimentos estrangeiros e abre a diplomacia a alianças frutíferas — a principal delas com os Estados Unidos de Donald Trump, seu fã incondicional. O problema é que, enquanto joga charme para os amigos, MBS cai sobre os inimigos com sanha de déspota. Para deter o Irã, adversário na disputa pela primazia na região, a aviação saudita bombardeia sem trégua o Iêmen, em uma matança indiscriminada (leia o texto). O Catar, vizinho crítico que virou a encarnação do mal, está submetido a um bloqueio liderado por Riad. Nada, porém, desgastou tanto a imagem supostamente progressista do príncipe quanto o assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi, seu desafeto, na Turquia, em outubro. Nem bem fora desligada a serra que desmembrou o corpo de Khashoggi (ainda não encontrado), todos os indícios apontavam para uma ordem saída diretamente do palácio. Na reunião do G20 em Buenos Aires, no começo do mês, MBS circulou como um pária — nem o chapa Trump chegou perto dele.
Publicado em VEJA de 26 de dezembro de 2018, edição nº 2614