É método comum a chefes de Estado dados ao autoritarismo: sempre confundir, criar zonas de sombra e, nas incertezas, garantir a permanência no poder, seja na marra, seja por meio de eleições. O presidente da Rússia, Vladimir Putin — reeleito com quase 90% dos votos para mais um mandato —, aproveitou um terrível atentado em Moscou para atrelá-lo a ucranianos ansiosos por vingança. Ele pouco se preocupou com a imediata reivindicação do crime, que matou 139 pessoas e deixou pelo menos 150 feridos em uma casa de shows, o Crocus City Hall, pelo Estado Islâmico. O modus operandi, aliás, por meio de ataque-surpresa e matança generalizada, combina com outras agressões do grupo, que andava sumido. Contudo, ter o carimbo da Ucrânia, para Putin, seria atalho para continuar a inaceitável invasão militar e alimentar o povo que o apoia. O truque parece ter funcionado. Do lado de fora do prédio, nos dias seguintes, brotaram ramos de flores, velas e cartazes em um memorial improvisado. Longas filas foram formadas para doar sangue aos internados, em quantidade suficiente para seis meses de atendimento em hospitais. Em Kiev, o assessor presidencial ucraniano Mykhailo Podolyak rapidamente negou qualquer envolvimento de seu país com a tragédia, mas não foi ouvido. “Todas as declarações oficiais do Kremlin e seus propagandistas são mentirosas, entremeadas por algumas meias-verdades”, disse o ex-enxadrista Garry Kasparov, oposicionista de relevância. O xadrez de Putin não é para amadores.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2024, edição nº 2886