Ataque inédito do Irã contra Israel explicita o novo jogo de poder global
Está nítido que a hegemonia dos Estados Unidos, em vigor desde a queda do Muro de Berlim, saiu de cena
Mesmo vivendo em permanente estado de atrito com os vizinhos, Israel não entrava em conflito direto com as forças armadas de algum país do Oriente Médio havia meio século — desde a guerra do Yom Kippur, em 1973, deslanchada por um ataque conjunto de Egito e Síria. Na madrugada de sábado 13, porém, o vulcão nunca adormecido da violência na explosiva região entrou em erupção quando o Irã, regido por uma autocracia islâmica, cujo objetivo é apagar do mapa o estado judeu, disparou mais de 300 mísseis e drones na direção de Jerusalém. O ataque foi anunciado previamente e espetacularmente neutralizado: Israel acionou sua defesa antiaérea, capitaneada por um sistema batizado de Domo de Ferro, e, com o suporte de baterias aliadas, interceptou quase todos os projéteis, com danos mínimos. Mesmo assim, ao longo da semana os gabinetes da Casa Branca, em Washington, da ONU, em Nova York, e do quartel-general de Israel, o HaKirya, em Tel-Aviv, foram palco de uma maratona de tensas reuniões com o propósito de desatar o nó da escalada de agressões mútuas, a caminho do caos.
A possibilidade se acentua com a solene promessa de retaliação feita pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, aumentando o risco de a situação fugir de controle. Nesse cenário volátil, em que interesses econômicos e geopolíticos se entrelaçam, o embate entre as duas maiores potências militares da região tem potencial de causar ondas de choque em todo o globo. O ataque do Irã foi uma resposta ao bombardeio de sua embaixada em Damasco, capital da Síria, no início do mês — não assumido por ninguém, mas no qual Israel deixou nítidas digitais —, que matou oficiais de alta patente da Guarda Revolucionária iraniana. O timing das bombas lançadas sobre o que seria, por definição, território iraniano foi criticado por aliados de Israel, por ocorrer no momento em que o país se encontrava imerso em uma operação de guerra contra o grupo palestino Hamas, afilhado do regime dos aiatolás, na Faixa de Gaza — também essa uma ofensiva tipo olho por olho, por se tratar de revide ao bárbaro atentado terrorista do Hamas que, em outubro, matou 1 200 israelenses, a maioria civis.
Em paralelo à incursão em Gaza por terra e ar, que segundo as autoridades palestinas já matou mais de 30 000 pessoas, Israel embrenhou-se em um processo de atrito com o Hezbollah, poderosa milícia financiada por Teerã que atua no Líbano e que passou a disparar mísseis diariamente contra cidades do norte israelense, resultando no deslocamento de 80 000 moradores. Agora, o temor é que os embates em Gaza e na fronteira com o Líbano, ao norte, se espalhem ainda mais, e com maior gravidade, empurrando o Golfo Pérsico para um conflito regional. “O ataque iraniano mexe com todo o tabuleiro geopolítico”, diz André Lajst, presidente da StandWithUs Brasil, que acompanha a situação na região.
Na interceptação dos mísseis e drones iranianos, Israel contou com a cooperação militar dos Estados Unidos, da França e do Reino Unido — além da inesperada participação da Jordânia, reino árabe que disse haver abatido projéteis que iam na direção do seu território. A aliança fortaleceu Netanyahu, pondo ao menos temporariamente de lado as pesadas recriminações que vinha sofrendo de aliados — entre eles o próprio presidente Joe Biden — e da população israelense pela incapacidade de encerrar a guerra em Gaza e libertar os cerca de 100 reféns ainda em poder do Hamas. Do lado de Teerã, a chuva de mísseis contra o “Pequeno Satã”, como classificam Israel (o “Grande” são os Estados Unidos), foi celebrada nas ruas. “Ambos podem reivindicar vitória, especialmente porque não houve morte de civis”, diz Mona Yacoubian, do Institute of Peace, de Washington.
Algumas das consequências do novo feixe de lenha lançado na fogueira do Oriente Médio foram a exposição do jogo de interesses que compõe o xadrez geopolítico do século XXI e a constatação inequívoca de que a hegemonia dos Estados Unidos, em vigor desde a queda do Muro de Berlim, saiu de cena e o planeta voltou a girar em torno de dois polos políticos distintos. Ciente de seu papel na manutenção do equilíbrio em uma região de alta instabilidade, cada parte finca pé — e tenta ampliar — sua área de influência. De um lado, as potências do Ocidente imediatamente saíram em socorro a Israel, que recebeu apoio incondicional do G7, o grupo das nações mais ricas, em reunião convocada no dia seguinte ao ataque. Na direção oposta, China e Rússia apressaram-se a prestar solidariedade ao Irã: Pequim classificou o ataque como um “ato de autodefesa” e Moscou atribuiu a crise à recusa americana em denunciar o bombardeio da embaixada iraniana no Conselho de Segurança da ONU.
Enquanto os chineses preferem atuar nos bastidores, a dobradinha Rússia-Irã é ostensiva. Graças a ela, Bashar al-Assad conseguiu reverter uma derrota certa na guerra civil síria e o arsenal russo armazena armamentos iranianos na guerra da Ucrânia. “Não víamos tamanha polarização desde a Guerra Fria”, diz Eugene Rogan, professor de história do Oriente Médio na Universidade de Oxford. “Com a diferença agora de que há menos estabilidade e muito menor comunicação entre os dois lados.” Um conflito aberto entre Irã e Israel tem potencial para projetar estilhaços por toda parte. Tel-Aviv nunca enfrentou inimigo tão preparado — estima-se que o exército iraniano some 610 000 homens, três vezes mais que o israelense, e tenha orçamento anual de 7 bilhões de dólares. Além disso, uma guerra declarada e a aplicação de novas sanções contra o Irã (que estão sendo discutidas) deixariam a economia mundial sujeita a uma escalada nos preços do petróleo, base da sustentação econômica iraniana, que só neste ano subiu 20%, superando os 90 dólares o barril. Outro temor é o efeito de um conflito em rotas comerciais cruciais. Os persistentes ataques dos hutis, outro grupo apoiado por Teerã, já prejudicam a passagem de navios pelo Mar Vermelho, e teme-se o eventual fechamento do Estreito de Ormuz, via navegável entre os Golfos de Omã e Pérsico por onde circula diariamente um quarto do comércio global de petróleo. “Qualquer problema ali pode estrangular o mercado mundial do produto”, afirma Richard Bronze, analista da consultoria Energy Aspects.
Irã e Israel travam um embate surdo desde que os aiatolás assumiram o governo, em 1979, e elegeram o país e os Estados Unidos como seus maiores inimigos — e não faltaram tentativas desde então de apeá-los do poder. Até agora, esse conflito se concretizou em ataques a navios, atentados contra alvos civis israelenses e no assassinato ocasional de figuras-chave iranianas, como Mohsen Fakhrizadeh, o padrinho do programa nuclear de Teerã, em 2020. Empenhados em evitar uma participação militar direta na batata quente do Oriente Médio, os iranianos cultivaram uma rede de grupos islâmicos radicais, armados e treinados por eles e espalhados por Iraque, Síria, Líbano e Iêmen (veja o mapa), a que deram o nome de Eixo da Resistência (ironia com o Eixo do Mal, de Irã, Iraque e Coreia do Norte, definido por George W. Bush depois dos atentados de 11 de setembro de 2001). “A região assiste à multiplicação de milícias que preferem agir pela via militar, aumentando o risco de fervura”, afirma Natalia Fingermann, professora de relações internacionais do Ibmec.
Ainda que a retaliação iraniana ao bombardeio de sua embaixada na Síria tenha sido planejada com contenção de danos, o risco de que a situação saia de controle permanece elevado. Impopular e refém da coalizão de extrema direita que o sustenta, Netanyahu avisou que precisa contra-atacar para que seu país não seja visto como fraco pelos inimigos, um entendimento replicado inclusive pelo centrista Benny Gantz, que integra o gabinete de guerra. “Israel cobrará o preço ao Irã da forma e no momento certo para nós”, disse ele. A doutrina rege as ações de Tel-Aviv em todos os momentos de alta tensão, como em 2006, quando o sequestro de dois soldados israelenses pelo Hezbollah culminou com o bombardeio e enorme destruição em Beirute. A única exceção se deu durante a Guerra do Golfo, dos Estados Unidos contra o Iraque, em 1991. Israel foi alvo de bombas iraquianas e não revidou para não interferir na operação americana. No caso do Irã, agora, as principais potências vêm realizando frenéticas costuras diplomáticas em prol da contenção. “Aceite sua vitória”, disse Biden em tenso telefonema de 25 minutos com Netanyahu. “As autoridades americanas sabem do custo altíssimos de uma guerra aberta e dos possíveis impactos na eleição presidencial de novembro”, afirma Sean Foley, do Middle East Institute, em Washington.
Além de pôr o mundo em suspense, o conflito entre Israel e Irã complica a situação dos palestinos em Gaza. Com praticamente todo o território arrasado por seis meses de guerra, 2 milhões de pessoas tentam sobreviver com uma ajuda humanitária insuficiente, enfrentando fome, doenças e bombardeios. Ao menos 300 000 seguem abrigados em Rafah, ao sul, na fronteira com o Egito, um último refúgio que está para ser atacado a qualquer momento — uma anunciada ofensiva contra focos do Hamas na cidade foi adiada pela crise com Teerã e agora tem data incerta. “O Irã reorientou o conflito, deixando Gaza relegada a segundo plano”, diz Aaron David Miller, do Carnegie Endowment for International Peace. Ponto central dos ressentimentos e da agressividade palpáveis no Oriente Médio, os civis palestinos, entra guerra, sai guerra, seguem no mesmo lugar, sem solução à vista. Os próximos dias serão cruciais.
Publicado em VEJA de 19 de abril de 2024, edição nº 2889