Depois de um começo capenga em que o primeiro-ministro Boris Johnson tomou a trilha da anticiência e fez pouco da pandemia — isso até ele mesmo se infectar e ter que ser hospitalizado —, o Reino Unido se tornou um modelo de detecção, testagem e vacinação contra o novo coronavírus. Desde 19 de julho, o “dia da liberdade” em que a maioria das restrições foi suspensa, os britânicos voltaram a se aglomerar sem máscara e relaxaram na vacinação, confiando no declínio dos contágios e mortes. Agora, atingido em cheio pela ômicron e tendo registrado a primeira morte no mundo em decorrência da nova variante, o país volta a exigir máscaras em locais fechados, testes diários de quem teve contato com pessoas contaminadas, trabalho remoto sempre que possível e passaporte de vacina em grandes eventos, tudo isso a poucos dias das festas de fim de ano.
O pacote foi aprovado a duras penas no Parlamento, onde um bloco de 100 conservadores votou contra o governo — um enorme baque para Johnson, que passa por semanas conturbadas por tantas falhas e escândalos que sua popularidade desabou: ele tem hoje 24% de aprovação e 66% de desaprovação. “É normal que a confiança do povo em seu líder caia em momentos de crise como a pandemia, mas é surpreendente que isso esteja acontecendo de forma tão intensa no Reino Unido, onde o primeiro-ministro goza de uma maioria confortável no Parlamento”, diz Rod Dacombe, analista político da King’s College de Londres e diretor do Centro de Política e Governo Britânicos.
Embora 70% da população esteja duplamente vacinada, a ômicron se espalha velozmente pela ilha. Os diagnósticos de Covid-19 dobram a cada dois ou três dias impulsionados pela nova variante, que sozinha é responsável por 200 000 casos diários e 40% das infecções em Londres e já é considerada predominante no país. Para tentar controlar o surto, o governo pôs em marcha uma monumental campanha para 18 milhões de terceiras doses e cobrir toda a população acima de 18 anos até o fim do ano.
Ao lado do descaso com os protocolos e do atraso na imunização nos últimos meses, duas causas são apontadas para o Reino Unido estar sendo tão afetado. Um é a excelência do sistema de detecção, que acrescenta novos casos às estatísticas com eficiência e rapidez. Outro é o fluxo de viajantes entre a ilha e a África do Sul, onde a ômicron nasceu — o mesmo fator que ajudou a disseminar rapidamente entre os britânicos a variante delta, de outra ex-colônia, a Índia. Apesar dos riscos, a perspectiva de lockdowns, ainda mais nesta época, está sendo muito mal recebida pela população.
Como se não bastasse essa dor de cabeça, Johnson e seu gabinete estão cada vez mais enrolados em indícios de que desobedeceram à proibição de reuniões em locais fechados e participaram de duas festinhas de fim de ano em 2020, uma em 27 de novembro e outra em 18 de dezembro. Um vídeo mostra uma assessora do gabinete, Allegra Stratton, fazendo piadas com sua equipe sobre o encontro festivo, em que teria havido até troca de presentes. Ela se demitiu e Johnson, que começou negando tudo, acabou pedindo desculpas e ordenando uma investigação minuciosa. Na mesma época desse escândalo, uma varredura na sede do Parlamento encontrou vestígios de cocaína em pelo menos onze banheiros de áreas restritas a funcionários.
O governo também está tendo de lidar com novos capítulos da novela das doações ao Partido Conservador usadas em esquema de caixa dois. A Comissão Eleitoral confirmou que uma contribuição de mais de 65 000 libras de uma empresa privada foi investida na surdina na reforma do apartamento em 11 Downing Street em que Johnson mora com a mulher, Carrie Symonds. Agora, investiga denúncias de irregularidades cometidas por outros parlamentares — no Reino Unido, donativos são permitidos, mas têm de ser devidamente registrados.
Em outra vertente de corrupção, o conservador Owen Paterson foi condenado a um mês de afastamento — punição que o primeiro-ministro fez de tudo para reverter — por ter recebido 100 000 libras para fazer lobby para duas empresas. Novamente, várias outras acusações surgiram e estão sendo apuradas. Ainda faltam dois anos para as eleições, os conservadores tories têm maioria de 360 cadeiras no Parlamento e Boris Johnson exibe extraordinária capacidade de cair e se levantar, mas pela primeira vez se fala na possibilidade de, se a maré ruim continuar, vir a ser afastado da liderança conservadora. “Poucos querem isso agora, mas tantos contratempos seguidos dão força ao debate”, diz Rod Dacombe. No lado iluminado da força, Johnson e Carrie anunciaram o nascimento no dia 9 de sua filhinha, ainda sem nome. Os dois já têm um menino e ele é pai de mais cinco de outras relações.
Publicado em VEJA de 22 de dezembro de 2021, edição nº 2769