Biden chacoalha o capitalismo ultraliberal americano com reformas
O presidente propôs um pacote de mudanças capitaneado pelo governo e patrocinado à base de impostos desembolsados pelos mais ricos
Joe Biden chegou à Casa Branca em janeiro com fama de moderado e cauteloso, um presidente na medida para estabilizar os Estados Unidos, país estremecido pelos efeitos da pandemia do novo coronavírus e pelos desatinos de quatro anos de Donald Trump. A ausência de grandes arroubos na longuíssima carreira — foi senador por Delaware por mais de três décadas e vice nos dois mandatos de Barack Obama — e os 78 anos de idade pregavam nele a pecha de simpático, mas francamente sem carisma. Passados cem dias de mandato, o marco inicial de todas as Presidências, o ocupante da Casa Banca virou outra pessoa. Três ambiciosíssimos planos econômicos assinados por ele, divulgados um logo depois do outro, pretendem derramar astronômicos 6 trilhões de dólares (quase 33 trilhões de reais) na economia — mais do que o PIB de países como Japão e Alemanha.
O objetivo no curto prazo é, claro, recompor o pulso econômico e social desacelerado pela Covid-19. No longo prazo, porém, Biden enxerga um novo Estados Unidos, no qual a onipresente mão do Estado (a mesma que os conservadores preferem decepar) impulsione o acesso da população mais pobre à saúde e à educação, a redução das desigualdades sociais e a garantia de um meio ambiente limpo e sustentável. O celebrado capitalismo americano seria assim revestido de traços, se não do socialismo, ao menos da social-democracia — um salto e tanto para quem já foi o picolé de chuchu do Hemisfério Norte. “Os planos de Biden representam as mais ousadas ideias propostas por um governante em quase um século. Se forem aprovados, ele ficará conhecido como o presidente da transformação”, diz James Kloppenberg, historiador e professor da Universidade Harvard.
O primeiro pacotaço, de 1,9 trilhão de dólares, foi anunciado ainda nos primeiros dias de governo e tinha o propósito expresso de reduzir os impactos da pandemia, com o envio de cheques de até 1 400 dólares para famílias de baixa renda, ajuda financeira para lares com crianças pequenas e um fundo bilionário para o investimento na saúde e na compra de vacinas. Diante da crise, da pressão popular e do fato de a maior parte das provisões ser temporária, a bolada foi aprovada no Congresso, mesmo tendo o governo maioria pequena na Câmara e ínfima no Senado — um ano antes, inclusive, Trump aprovara plano parecido e até mais caro, de 2,2 trilhões. Passados menos de dois meses, Biden apresentou o primeiro projetão de longo prazo — e que projetão. Batizado de American Jobs Plan, prevê investimentos de 2,3 trilhões de dólares durante oito anos para reformular a infraestrutura do país, com construções e reformas de rodovias, sistemas de saneamento e tratamento de água e novos projetos de moradia e energias renováveis. “Empregos, empregos, empregos”, resumiu Biden sobre o efeito prático da iniciativa — ressaltando o lado mais palatável para o americano médio de um programa que pretende, entre outras reviravoltas, plantar o país na trilha das emissões zero de carbono, uma vistosa bandeira da esquerda democrata.
No fim de abril, mais um pacote ancorado em um rio de dinheiro. O American Families Plan destina 1,8 trilhão de dólares para, entre outras coisas, garantir acesso gratuito à pré-escola para 5 milhões de crianças de baixa renda, bancar dois anos básicos de educação superior grátis a todos os americanos e perpetuar medidas temporárias do programa antipandemia, como uma versão local do Bolsa Família e a extensão dos dias de folga do trabalho para cuidar da saúde e, novidade, dos filhos. “Estamos trabalhando novamente, sonhando novamente, descobrindo novamente, liderando o mundo novamente”, proclamou o presidente ao apresentar o plano no primeiro discurso ao Congresso — onde, em mais uma demonstração de modernidade, estava flanqueado por duas mulheres: a vice Kamala Harris à direita e a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, à esquerda.
Para financiar parte da gastança sem precedentes, o governo quer aumentar os impostos de quem tem mais dinheiro. A alíquota dos grandes conglomerados subiria de 21% para 28% ao ano. No caso dos americanos que ganham mais de 400 000 dólares anualmente, a taxa sobre ganhos de capital e dividendos chegaria a 39,6%. Somando outros impostos, as taxas máximas sobre salários e lucros de pessoas físicas iriam a 43%, ante 24% no governo Trump. Uma verba de 80 bilhões de dólares está reservada para a Receita Federal com o propósito explícito de aumentar a vigilância e criar mecanismos que impeçam a transferência de recursos para paraísos fiscais e fechem brechas na lei que facilitam doações e heranças sem os impostos devidos. Com tudo isso, a Casa Branca pretende arrecadar 4 trilhões de dólares em até quinze anos, quantia que ainda não se compara aos cofres entupidos de impostos das sociais-democracias europeias, mas se apoia em conceitos bem semelhantes.
Os projetos de Biden representam uma guinada radical em relação à administração anterior, que aplicou o maior corte de impostos corporativos já visto pelos Estados Unidos e acabou com a alocação de verbas para imigrantes. Mas as ambições do presidente vão mais longe. Os pacotes, se aprovados pelo Congresso — e este é um grande “se” —, revertem quarenta anos de mínima interferência do Estado e livre condução da economia no país, política implantada quando Ronald Reagan assumiu a Casa Branca, em 1981, e proclamou o fim do por ele execrado Big Government, “que gasta demais”, em um até hoje lembrado discurso no Congresso. Biden, àquela altura, ainda se consolidava como jovem senador e ninguém imaginava que, um dia, iria arquitetar um plano orçamentário “anti-Reagan”, como vem sendo qualificado, por seu potencial de transformação. “Se toda a agenda legislativa for aprovada, teremos o maior conjunto de mudanças no papel e na função do governo dos Estados Unidos em meio século”, diz Peter Levine, cientista político e professor da Universidade Tufts.
Por seu caráter social e objetivo de minimizar a concentração de renda — apesar de ser a maior economia do mundo, os Estados Unidos têm cerca de 40 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza —, o projeto atual é inevitavelmente comparado às políticas arrasa-quarteirão implantadas por Franklin Roosevelt para reverter a Grande Depressão dos anos 1930 (leia a coluna de Vilma Gryzinski). “As políticas são parecidas, mas o modelo anterior era mais abrangente”, avalia Gavin Wright, professor de história econômica da Universidade de Stanford. Há ainda quem identifique semelhanças com o investimento anunciado por Lyndon Johnson para beneficiar as classes média e baixa em 1964, como parte de um conjunto de leis chamadas de Great Society. Mas, mesmo em valores corrigidos, o montante empenhado por Biden faz os antecessores comerem poeira: o New Deal, de Roosevelt, custaria 650 bilhões de dólares em valores atuais; o Great Society, de Johnson, não passaria de 1 trilhão.
Antes de escrever seu nome na história, porém, Biden precisa garantir que seus pacotes de investimento em infraestrutura e programas sociais, bem como os aumentos de impostos, sejam aprovados no Congresso. As medidas puramente orçamentárias estão sujeitas a menos percalços — daí o termo infraestrutura ser tão repisado em relação ao plano mais caro. Mas nos pontos que exigem mudança de legislação, como impostos, imigração e reformas no campo social, a briga com os republicanos — e mesmo com parte dos democratas — será difícil, com conservadores de todos os lados afiando as armas contra a construção do que chamam, de brincadeira (mas nem tanto), de Estados Unidos da Escandinávia. “Sempre será assim: uns achando radical demais, outros querendo ainda mais mudanças. Mas, embora sua proposta seja de fato mais progressista, o que o governo está tentando é reequilibrar o país”, diz Luis Fraga, ex-conselheiro de Barack Obama e professor da Universidade de Notre Dame.
O projeto de reforma tributária, especialmente, vem causando calafrios no mercado financeiro e nas grandes empresas, que temem um banho de água fria na muito promissora recuperação econômica pós-Covid. Uma pesquisa com 178 CEOs americanos conduzida pela associação sem fins lucrativos Business Roundtable e publicada em abril mostrou que a maioria dos entrevistados acredita que o aumento dos impostos prejudicará seus negócios, impactando diretamente gastos com aumento de salários e contratações. Economistas também temem — com razão — que a injeção de dólares na economia possa acelerar a inflação e se refletir diretamente no poder de compra dos consumidores. A sensação de insegurança está produzindo uma corrida de bilionários por aconselhamento financeiro. Um dos poucos do clube a se pronunciar a favor dos pacotes, o fundador da Amazon, Jeff Bezos, reconheceu a necessidade de concessões de todos os lados para melhorar a vida dos americanos. Altas concessões: no caso dele, dono de uma fortuna de 193 bilhões de dólares, os herdeiros pagariam 36 bilhões em impostos. “É possível que algumas empresas mudem sua sede para países com taxações menores, mas a expectativa da Casa Branca é que os investimentos em infraestrutura compensem as perdas”, diz Bernhard Gunter, economista e professor da American University.
No pano de fundo dos projetos trilionários de Biden está sua intenção de recolocar os Estados Unidos firmemente no papel de maior potência diante da China e, em menor escala, da Rússia. Desta vez, porém, com pinceladas nítidas do chamado soft power pintando nos Estados Unidos a imagem de país moderno, preocupado com o meio ambiente e empenhado em combater as desigualdades que impedem a assimilação de minorias. Conta a seu favor o fato de as dificuldades da pandemia e os quatro anos de Donald Trump terem tornado as ideias progressistas e a presença do Estado mais aceitas do que nunca. Em 2015, 68% dos democratas e 23% dos republicanos disseram que o governo federal deveria fazer mais para resolver os problemas nacionais. Em setembro de 2020, as taxas saltaram para 82% e 32%. Mais: 67% dos americanos aprovaram o plano de alívio da Covid-19 um mês após sua ratificação e 68% apoiam o investimento em infraestrutura e empregos. Se Biden vai mesmo emplacar as mudanças anunciadas nos próximos quatro ou oito anos, ninguém sabe ao certo. Mas, no mínimo, já conseguiu girar a roda do mastodonte americano. E não foi para a direita.
Publicado em VEJA de 12 de maio de 2021, edição nº 2737