Cadê a comida que estava aqui? Prateleiras britânicas começam a esvaziar
A escassez geral de produtos e de mão de obra resultante da pandemia, somada aos efeitos do Brexit, já causa impacto nos supermercados
Conhecida por servir seu cardápio de fast-food em áreas remotas e de difícil acesso — exemplo: a base militar americana na Baía de Guantánamo, em Cuba —, a rede McDonald’s tomou uma providência inusitada nos últimos dias de agosto: em pleno Reino Unido, suspendeu a venda de milk-shake nas 1 250 lojas por falta de matéria-prima. É uma amostra, das mais dramáticas para aficionados, da escassez de produtos que tem afetado o mundo inteiro por causa da pandemia e que se abate com vigor redobrado na ilha britânica pós-Brexit. Seja pelo caos que se instalou nos transportes, seja pela mão de obra barata que acordou para sua importância e se recusa a voltar ao trabalho nas mesmas condições, seja pela pura e simples suspensão da produção durante meses, o fato é que, à medida que o planeta começa a girar como antes, serviços e indústrias esperneiam para suprir a demanda renovada. O gargalo é geral, mas se estreita mais ainda no reino divorciado da União Europeia, de onde se calcula que 1 milhão de moradores estrangeiros tenham ido embora desde a virada da página final da separação, em 31 de janeiro de 2020 — a maior queda anual da população residente desde a II Guerra Mundial.
O nó mais crucial está no setor de transportes: a força de trabalho, de 600 000 motoristas pré-pandemia, minguou e as empresas estão tendo enorme dificuldade para preencher cerca de 100 000 vagas de necessidade premente. Como o Brexit acabou com a livre circulação entre a ilha e o continente, os motoristas precisam encarar uma enorme burocracia e longas filas na fronteira, o que atrasa a chegada de mercadorias e reduz os ganhos (eles são pagos por quilometragem) — fatores que tornam o Reino Unido um mercado pouco atraente para entregas. Dentro do país, o interesse pela profissão também está caindo. Segundo a associação de transportadoras, 25 000 pessoas a menos fizeram exame de habilitação para dirigir caminhão neste ano. Preocupado com o desabastecimento e as prateleiras vazias nos supermercados, o governo flexibilizou a jornada de trabalho, elevando o limite diário de nove para onze horas ao volante duas vezes por semana. “Isso permitirá que motoristas de veículos pesados façam viagens um pouco mais longas”, diz o comunicado, ressaltando que a exceção só deve ser usada quando não comprometer a segurança. Até agora, a medida não surtiu muito efeito.
A falta de mão de obra também emperra o setor de alimentação. A Associação Britânica de Produtores de Carne, com 15% de funcionários a menos, cogitou convocar presidiários para atuar no processamento, mas a proposta foi vetada. “As regras de imigração adotadas depois do Brexit fecharam abruptamente o acesso ao mercado britânico de estrangeiros com experiência e competências específicas”, explica Rick Allen, executivo-chefe da associação de produtores do setor que emprega mais de 75 000 pessoas e movimenta 8,2 bilhões de libras por ano. A produção de aves e derivados passa pelos mesmos transtornos — segundo o Conselho Britânico de Avicultura, 7 000 vagas (um em cada seis empregos) ficaram vazias com a volta de trabalhadores estrangeiros para o continente.
A rede Nando’s, que faz sucesso com seu péssimo frango apimentado, acaba de fechar 45 lojas por causa da falta de matéria-prima. A criação de perus se reduziu e já se antecipam problemas de fornecimento para as festas de fim de ano. “O tempo passa rápido. Estamos nos aproximando do movimento intenso do Natal e Ano-Novo, quando uma cadeia confiável de suprimento é vital”, alerta Richard Walker, diretor da rede de supermercados Iceland. Do outro lado da queda de braço, o governo insiste na tecla de que as empresas precisam achar meios de atrair britânicos para os postos vagos. “Contratar estrangeiros é uma solução temporária, de curto prazo”, afirma o ministro do Comércio, Kwasi Kwarteng.
Os atrasos no setor de transportes resultam, no momento, em estoques 21% abaixo do nível esperado de vendas no varejo, a menor proporção desde que o índice passou a ser medido, em 1983. O comércio de materiais de construção está igualmente comprometido — o prazo de entrega passou de uns poucos dias para até três meses. Montadoras de automóveis deixam de produzir por falta de peças. “As empresas precisam se planejar para a nova situação”, diz Alex Hersham, diretor-executivo da empresa de logística Zencargo. Aos consumidores, resta torcer para o abastecimento se regularizar — ou começar a mudar de hábitos. A VEJA, o McDonald’s informou que não há previsão de retorno dos milk-shakes às lojas britânicas.
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2021, edição nº 2754