Até para a atribulada política peruana, que diplomou e defenestrou seis presidentes nos últimos cinco anos e teve pedidos de prisão expedidos contra todos os mandatários desde 1990, o dia 7 de dezembro foi de tirar o fôlego. Naquela quarta-feira, Pedro Castillo, ex-professor e líder sindical que se elegeu por apertada margem no ano passado, foi à TV anunciar que estava dissolvendo o Congresso, decretando estado de exceção e concentrando todo o poder nas suas mãos. No calor da impulsividade, inexperiência e inabilidade, três marcas de seu curto mandato, Castillo se esqueceu de alinhavar previamente algum respaldo para seu ato. Resultado: ninguém obedeceu. Em pouco mais de uma hora, os congressistas se reuniram e aprovaram seu afastamento com 101 votos a favor, seis contra e dez abstenções (o que mostra que até parte de sua própria bancada de quinze parlamentares o deixou na mão). Em seguida, a vice-presidente, Dina Boluarte, foi empossada e o candidato a ditador acabou o dia preso, acusado de rebelião e conspiração.
Tudo aconteceu tão rápido que os apoiadores de Castillo, atarantados, demoraram até o dia seguinte para sair em massa às ruas, protestando contra seu afastamento (embora muitos também condenassem sua tentativa de golpe). A mobilização em Lima se ampliou para o sul do país, houve tentativa de tomada de dois pequenos aeroportos, o acesso a Machu Picchu foi fechado, a polícia disparou tiros e bombas de gás lacrimogêneo, o Exército entrou em campo para reforçar a repressão e, até a quarta-feira 14, o saldo era de seis mortos, entre eles dois adolescentes, e 200 feridos. “Fez-se uma sopa tóxica, com um presidente fraco, um Congresso disfuncional, um líder deposto tentando gerar resistência popular à sua remoção, a população agitada e nenhuma ideia de como sair dessa barafunda”, descreve Eric Farnsworth, vice-presidente do Conselho das Américas.
Boluarte, 60 anos, advogada marxista que se aliou a Castillo durante a campanha mas condenou sua tentativa de golpe, se mexeu para apaziguar os ânimos encaminhando um pedido de antecipação de eleições para abril de 2024, dois anos antes do previsto. Nada feito. Os manifestantes, vindos sobretudo de sindicatos agrários e associações de camponeses e indígenas — a fatia mais pobre do país, que formou a base de apoio do agora ex-presidente —, insistem na libertação dele, renúncia de Boluarte, convocação de uma Assembleia Constituinte e nova eleição imediata, essa para renovar o Congresso, única instituição com índice geral de aprovação (11%) menor do que o de Castillo (24%).
Rachado em uma infinidade de partidos (o mais numeroso tem 24 dos 130 deputados), o Legislativo é inimigo declarado de todo e qualquer presidente — em um ano e pouco, aplicou três pedidos de impeachment em Castillo, e foi justamente tentando se livrar do último que ele fez o que fez. Com tal folha corrida, o Congresso é apontado como o maior responsável pela crise, ao impedir que os governos avancem suas agendas. No caso de Castillo, matuto dos cafundós dos Andes que anda de chapelão na cabeça e se elegeu com o lema “Chega de pobres neste país rico”, a oposição ferrenha do Parlamento contou com o estímulo das alas conservadoras e da elite da sociedade. Entre 2004 e 2013, o Peru, segundo maior produtor de cobre do mundo, esteve entre os países que mais cresceram na América Latina, a uma média de 6,4% ao ano, mas diante da sucessão de terremotos políticos o aumento do PIB não deve passar de 2,7% neste ano. O progresso não reduziu a desigualdade e um quarto da população vive na miséria, enquanto a corrupção grassa sem freio.
Sem perspectiva de melhora no âmbito do atual sistema, os peruanos vêm depositando nos últimos tempos suas esperanças na elaboração de uma nova Constituição que puna com rigor os ganhos ilícitos e interrompa o círculo de instabilidade. “A democracia peruana, como Sísifo, começa a subir de novo a montanha, mas ninguém sabe o que ainda pode acontecer”, diz o cientista político Daniel Zovatto, referindo-se ao personagem da mitologia grega condenado a rolar uma rocha até o topo de um monte, vê-la cair e começar tudo de novo. Com as ruas tomadas por protestos, a Justiça prorrogou a prisão preventiva de Castillo e o governo decretou estado de emergência em todo o país. É o ciclo peruano cumprindo sua sina de rodar sempre no mesmo lugar.
Publicado em VEJA de 21 de dezembro de 2022, edição nº 2820