Chefe do Parlamento português a VEJA: ‘Impossível’ extrema direita vencer
Augusto Santos Silva veio ao Brasil com a missão de angariar votos ao seu Partido Socialista, mergulhado num escândalo de corrupção, para eleição em 10/3
Enquanto a esquerda europeia recuava nos últimos anos, Portugal vinha caminhando na direção oposta com o primeiro-ministro António Costa, do Partido Socialista (PS). No poder desde 2015, primeiro liderou com habilidade uma coalizão “saco de gatos” apelidada de “Geringonça”, depois foi reeleito em 2022 com uma confortável maioria absoluta no Parlamento. Se a ascensão foi paulatina, a queda foi abrupta: Costa renunciou em novembro passado, após uma megaoperação que investiga corrupção em negócios ligados à transição energética atingir o núcleo duro de seu governo – apesar de negar qualquer envolvimento pessoal em falcatruas. Novas eleições foram convocadas para 10 de março para substituir o líder do país. É neste contexto que Augusto Santos Silva, presidente do Parlamento português, desembarcou na terça-feira 20 no Brasil, com a missão de angariar votos de portugueses no estrangeiro para o PS, legenda à qual é afiliado desde 1990.
As últimas pesquisas indicam que o PS está empatado com 29% das intenções de voto com o principal rival, o Partido Social Democrata (PSD), de centro-direita, com quem se alternou no poder desde o final da ditadura, há 50 anos. Mas quem preocupa mesmo analistas mundo afora é o Chega, de extrema direita, primeira opção para 18% dos eleitores. Silva rechaça a possibilidade de que Portugal se junte ao rol de nações europeias governadas por ultradireitistas, como é o caso da Itália. “É impossível que a extrema direita chegue ao poder”, garantiu em entrevista a VEJA. Mas reconheceu que há um risco real de uma aliança entre o PSD e o Chega, o que, caso sejam os sociais democratas os vencedores, significaria uma interferência direta de ultraconservadores na agenda política.
A VEJA, Silva também defendeu a integridade do PS em meio à crise política e legitimou o sucessor de Costa, Pedro Nuno Santos – político da ala mais à esquerda da legenda que foi o principal arquiteto da “Geringonça”, mas cuja carreira tem lá suas turbulências: ele foi forçado a se demitir do cargo de ministro dos Transportes em 2022, devido a escândalo provocado pelo pagamento de indenizações de 500 mil euros a um administrador da TAP Air Portugal enquanto a companhia aérea era alvo de um plano de reestruturação. A importância dos eleitores portugueses no Brasil no xadrez político e a grave crise de habitação que acossa habitantes de Lisboa e do Porto há meses também foram discutidas na entrevista a seguir.
Como pretende lidar com as repercussões da recente crise política em Portugal? Os portugueses conhecem muito bem o Partido Socialista. Ao longo dos últimos 50 anos de democracia, o PS, que é de centro-esquerda, liderou o governo em praticamente metade desse tempo, em alternância com o Partido Social Democrata (PSD), de centro-direita. E aqui temos um princípio, que nos parece o mais correto, de que a Justiça deve tratar dos assuntos da Justiça, e a política deve tratar dos assuntos da política. Por isso, quando houve a informação de que corria um inquérito no Supremo Tribunal que envolvia o então primeiro-ministro, António Costa, ele entendeu que devia demitir-se para preservar a função de premiê.
Nós aguardamos tranquilamente que esse inquérito decorra e produza os seus resultados. Mas, com isso, foram convocadas eleições para escolher um novo governo. Não vamos cair no erro de mesclar aspectos de Justiça com aspectos de política. Quando isso acontece, se me permite usar uma expressão popular portuguesa, o caldo fica entornado. As coisas ficam confusas, tortas.
O sucessor de António Costa como secretário-geral do PS, Pedro Nuno Santos, coleciona polêmicas em sua carreira política. A confiança na legenda não será ainda mais prejudicada por isso? Olha, a única maneira segura que existe para qualquer pessoa nunca errar numa decisão é não tomar a decisão. Se nós não fizermos nada, não arriscarmos nada, não procuramos implementar nada, evidentemente que não cometeremos nenhum erro. A não ser o maior de todos, que é desistir, trair a confiança dos eleitores.
O Pedro Nuno Santos, como ministro das Infraestruturas e da Habitação (2019-2022), tomou muitas decisões acertadas, a mais importante das quais foi relançar a ferrovia em Portugal. Também cometeu alguns erros, que ele assume. Já seu rival, o candidato do PSD, Luís Montenegro, de fato nunca cometeu um erro como membro do governo. Sabe por quê? Ele nunca foi membro de um governo. Não tem qualquer experiência executiva. Ninguém confiou nele o suficiente para o colocar na posição de ministro, ou mesmo de secretário, e por isso nunca precisou tomar decisões de governação.
Com 15 anos de carreira, eu sou a segunda pessoa que mais tempo ocupou cargos de governo em Portugal. Evidentemente que também eu cometi erros. Como chanceler (2015-2022), pequei ao acreditar até o fim que a Rússia não invadiria a Ucrânia. Achava que não era possível, e isso me obrigou a reagir à invasão de supetão. Não fosse assim, talvez tivesse me preparado melhor. Mas uma coisa é certa: nós aprendemos com os nossos erros, como fez Pedro Nuno Santos.
Portugal sofre com uma grave crise de habitação e de custo de vida. Como o PS pretende lidar com isso em um próximo mandato? De fato, vivemos uma situação grave em Lisboa ou no Porto. Mas isso também acontece em São Paulo, no Rio, em Amsterdã, Londres, Paris, Madri, Barcelona… Não é um problema exclusivamente português, e certamente não é simples, portanto não é algo que demagogos possam resolver com respostas fáceis.
A crise por aqui foi agravada por duas razões. A primeira é um efeito negativo de uma coisa positiva. Portugal tornou-se um país na moda, um dos destinos turísticos mais importantes do mundo, para onde aposentados europeus e brasileiros escolhem ir para viver os últimos anos da sua vida, além de ser muito demandado por estudantes ou profissionais. Muitos estrangeiros compraram casa em Lisboa e no Porto, enquanto outras diversas habitações foram destinadas ao turismo, o que diminuiu a oferta e fez subir os preços. A segunda razão foi um erro de planejamento. Durante muitos anos, o governo português facilitou a compra da casa própria com juros unificados, baixos, o que quer dizer que uma parte considerável das famílias, como a minha, é proprietária do imóvel que habita.
Para corrigir estes dois problemas, introduzimos limitação ao aumento dos aluguéis e também à transformação de casas de habitação em alojamentos turísticos. Também apostamos no aumento da habitação pública disponível; o Estado e prefeituras estão construindo casas para aumentar a oferta. Especialmente alojamentos estudantis, já que, em Lisboa, universitários podem chegar a pagar cerca de R$ 3 mil apenas para alugar um quartinho. Pedro Nuno Santos, quando ministro das Infraestruturas e da Habitação, é quem iniciou estes programas.
As últimas pesquisas indicam um avanço eleitoral do partido de extrema direita Chega. Portugal pode seguir o mesmo caminho da Itália, por exemplo, como mais um país na Europa tomado pelo extremismo de direita? Aqui a coisa é diferente. A grande vantagem do sistema político português é que temos dois grandes partidos que se situam no centro do sistema, o PS e o PSD. Eles tem se alternado no poder, dividindo praticamente na metade os governos dos últimos 50 anos, desde o fim da ditadura. Não há mais nenhuma legenda que, até agora, tenha conseguido a confiança dos portugueses para liderar governos. Portanto, é impossível que a extrema direita chegue ao poder em Portugal.
Só que existe um risco. Os partidos menores, à esquerda ou à direita, se aliam ao PS e ao PSD. Se o Chega conquistar muitos assentos na Assembleia, os sociais democratas podem precisar dos votos dos deputados da extrema direita para governar, caso vençam as eleições. Por isso a mensagem dos socialistas é muito simples: a melhor maneira de evitar que a extrema direita tenha influência no governo em Portugal é votar no Partido Socialista.
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As pesquisas também sugerem que não haverá maioria absoluta de um só partido nas próximas eleições. O PS negocia uma coalizão, uma nova “Geringonça”, com os partidos menores de esquerda para conseguir formar um governo? Sim. Se não tivermos maioria, o PS tem de ir buscar à sua esquerda o apoio necessário para poder governar. Da mesma maneira, se o PSD ganhar as eleições e sem maioria, teria de buscar apoio na direita.
A postura do Partido Socialista é que, se os sociais democratas vencerem, não apoiaremos nenhum voto de rejeição do governo do PSD na Assembleia. Quando perguntamos se eles fariam o mesmo por nós, não responderam. Isso prova que eles pensam em aliar-se à extrema direita, o que seria um erro muito perigoso.
O que é o “Círculo Eleitoral Fora da Europa” e como ele afeta as eleições de Portugal? Esse sistema permite que cidadãos de países europeus que moram no estrangeiro votem nas eleições, para escolherem políticos que possam representá-los. Em Portugal, isto tem uma grande importância. Só para se ter uma ideia, a nação tem 10,5 milhões de habitantes, menos que a população da cidade de São Paulo. Mas há outros 2,3 milhões de pessoas com um cartão de identidade portuguesa que vivem fora do país e podem potencialmente participar das eleições.
Portugal possui um sistema unicameral (diferente do que acontece no Brasil, em que há o Senado e a Câmara de Deputados), que é a Assembleia da República, composta por 230 deputados. Desses, quatro são eleitos pelo chamado círculo da imigração – dois por portugueses que residem em outros países da Europa, e dois por aqueles que vivem nas Américas, na África, na Ásia e na Oceania. Em 2022, nas últimas eleições, votaram neste círculo 65 mil pessoas, que elegeram dois deputados. Um deles sou eu. Neste ano, o Ministério da Administração Interna afirmou que 1,5 milhões se registraram para participar do pleito de 10 de março.
Como a comunidade luso-brasileira se encaixa no seu xadrez eleitoral? Quando me candidatei pela primeira vez pelo Círculo Eleitoral Fora da Europa, em 2019, eu era chanceler. Na época, fiz um giro por diversos países, com objetivo de levar a mim próprio ao exame dos portugueses no estrangeiro. Mas, quando fui eleito pelo círculo de imigrantes em 2022, também me tornei presidente da Assembleia da República de Portugal, o que significa que tenho muitas responsabilidades em Lisboa e não posso viajar tanto. Com tempo restrito, tive que tornar minha campanha mais eficiente, concentrada, na prática, em apenas uma semana. Como metade dos que votam fora da Europa vivem no Brasil, evidentemente, não podia deixar de vir.
Quais são as principais demandas que o senhor escuta de portugueses que vivem no Brasil? São três demandas fundamentais. A primeira é a melhoria dos serviços nos consulados, e a segunda se relaciona aos laços de ligação com Portugal; o Estado português precisa apoiar as associações de imigrantes e também respaldar a mídia portuguesa no estrangeiro.
A terceira demanda, particularmente sensível, é que os portugueses precisam que haja relações normais, boas, fluídas e eficazes com os países em que eles residem. Felizmente, no caso do Brasil, nós não temos nenhum problema neste quesito. Mas em nações como a Venezuela, é mais difícil. Às vezes, como chanceler, tive que ligar para o celular pessoal do meu colega venezuelano para lidar com a violência urbana, que afetou estabelecimentos comerciais, como padarias, de donos portugueses.
Também estávamos escutando muitas reclamações por problemas laborais no Brasil. Mas isso já foi resolvido no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que aumentou salários e passou a ter mais diálogo com sindicatos do que o governo anterior. Ainda bem.