Chega de aperto: a revolução no cotidiano das cidades que reabrem
Conceitos como prioridade a ciclistas e pedestres, distância nos parques e casas bem ventiladas vieram para ficar
Por volta de 1486, quando a Europa era castigada por surtos recorrentes de peste bubônica, Leonardo Da Vinci esboçou o projeto de uma cidade às margens do Rio Ticino, no norte da Itália, com ruas largas, banhadas por luz natural e monitoramento do ciclo hidrológico para conter inundações. Avançada demais para a época renascentista, como muitas de suas ideias, a proposta ganharia nova forma já nos tempos modernos, quando finalmente os governantes perceberam que só metrópoles limpas e saudáveis romperiam a sequência de epidemias mortais. Grandes reformas nos séculos XIX e XX resultaram no traçado amplo das avenidas parisienses, que inspiraram o prefeito carioca Pereira Passos e o sanitarista Oswaldo Cruz a replicar o modelo no Rio de Janeiro. São mostras de como a história das cidades se confunde com a das epidemias, e não será diferente com a Covid-19, o novo flagelo da humanidade.
Embora as aglomerações sejam, mais uma vez, as vilãs da propagação do novo coronavírus, e por causa disso um terço da população planetária tenha sido obrigado a se isolar em casa, depois que o surto passar a planta que aglutina muitos prédios colados uns nos outros (e transbordando de gente) deve continuar prevalecendo nas metrópoles, por motivos práticos. “O ajuntamento otimiza os gastos públicos, facilita o deslocamento e amplifica as interações. É inclusive mais sustentável, ao potencializar o uso dos recursos naturais”, explica Leandro Medrano, professor de história da arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP). “Mas a forma de adensamento vai mudar, com novos mecanismos de distanciamento”, prevê. A expectativa dos urbanistas é que algumas armas contra o vírus tenham vindo para ficar, entre elas as portas só de entrada e só de saída em locais públicos, as divisórias de acrílico nos comércios, as mesas mais separadas nos restaurantes e, em geral, os protocolos mais rigorosos de limpeza.
No transporte, a perda de espaço dos carros e o cuidado para evitar lotação excessiva nos metrôs e ônibus são mudanças com tom definitivo, e vários projetos estão em andamento para estimular a população a andar a pé e de bicicleta. Milão, no norte da Itália, a primeira grande cidade do Ocidente a fechar sob o peso do contágio, vai transformar 35 quilômetros de ruas em vias exclusivas para ciclistas e pedestres. Além de conter aglomerações, o projeto Ruas Abertas também espera proteger o meio ambiente — 80% das mortes pela Covid-19 ocorrem nas regiões mais poluídas do mundo. Os ciclistas já estão fazendo a festa em Bogotá, capital da Colômbia — um caso de sucesso na América Latina no combate à pandemia —, onde a rede de mais de 35 quilômetros de ciclovias passou a operar todos os dias da semana, em vez de só aos domingos, e assim permanecerá.
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Clique e AssinePrioridade à bicicleta está nos planos, em franco andamento, de 134 cidades da Alemanha, entre elas a capital, Berlim. Na histórica Filadélfia, principal cidade da Pensilvânia, no leste dos Estados Unidos, a população encaminhou uma petição em favor da criação de mais espaços livres para a circulação de pedestres e ciclistas, estimulada pelo aumento de 150% no uso de bicicletas nestes últimos meses. Ali perto, em Nova York, epicentro inicial da epidemia americana e até pouco tempo atrás firme defensora da primazia dos automóveis, toma forma um projeto de expansão de 160 quilômetros de ciclovias. Em Viena, conhecida pelos belos parques onde a flexibilização da quarentena já permite caminhar, o prestigiado Studio Precht apresentou à prefeitura um projeto inédito, o Parc De La Distance (em francês, para homenagear Versalhes), feito para ser apreciado sozinho, ou no máximo de dois em dois. Trata-se de corredores delimitados por cercas vivas no estilo labirinto (visto do alto, o parque lembra uma impressão digital) que impõem quase 1 metro de distância entre as pessoas que circulam por eles. Em Paris, por sua vez, a iniciativa Cidade 15 Minutos, da prefeita Anne Hidalgo, tem por objetivo motivar os parisienses a fazer a pé seus percursos diários por ruas fechadas a carros e eliminar o uso de veículos motorizados em trajetos de até 5 quilômetros.
O distanciamento social na pandemia também acelerou processos que já estavam em andamento, como o trabalho em sistema de home office. Mais profissionais vão adotá-lo definitivamente — o Twitter já avisou que liberará o trabalho remoto permanente para todos os funcionários que assim preferirem. Com isso, os especialistas antecipam menos espaço para escritórios e, no lugar deles, o surgimento de novos bairros com cafés que oferecem internet, locais de coworking, restaurantes e parques. Da mesma forma, a opção por compras on-line deve se solidificar e encolher as áreas de comércio. “Centros de varejo vão virar zonas residenciais. E quando a crise acabar se prevê um boom de bares e restaurantes. Uma lição que a Covid-19 nos deixa é que esses lugares são essenciais para o convívio social”, diz William Fulton, diretor do Instituto Kinder de Pesquisa Urbana, no Texas.
Nas moradias, a ventilação deve ganhar lugar de destaque — algo parecido com a maneira como os sanatórios ascéticos para tratamento de tuberculose na Europa do século XIX inspiraram a arquitetura modernista, com paredes brancas e muito vidro para ensolarar ambientes. “Saúde e bem-estar eram quesitos usados para diferenciar projetos de moradias. Agora eles serão imprescindíveis”, afirma Joanna Frank, presidente e CEO da empresa americana Center for Active Design, responsável pelo certificado Fitwel, referência internacional de prédios saudáveis. A casa pós-pandemia, diz ela, terá claraboias, janelas grandes, terraços, varandas e pátios para exercícios físicos e meditação. No Brasil, onde quase 15 milhões de pessoas vivem em moradias precárias, segundo o instituto Data Favela, a distância entre casas e apartamentos bem ventilados e a realidade é imensa, mas o drama da Covid-19 escancara a urgência de políticas que deem fim aos ajuntamentos humanos precários. “Cidades resilientes são aquelas com capacidade para se planejar e mitigar desastres”, explica Steven Pedigo, diretor do laboratório de pesquisa de urbanismo Urban Lab, da Universidade do Texas. Em outras palavras: novas pandemias virão e esta é a chance de se preparar para elas.
Publicado em VEJA de 27 de maio de 2020, edição nº 2688