Fortaleça o jornalismo: Assine a partir de R$5,99
Continua após publicidade

Chega de aperto: a revolução no cotidiano das cidades que reabrem

Conceitos como prioridade a ciclistas e pedestres, distância nos parques e casas bem ventiladas vieram para ficar 

Por Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 14h31 - Publicado em 22 Maio 2020, 06h00

Por volta de 1486, quando a Europa era castigada por surtos recorrentes de peste bubônica, Leonardo Da Vinci esboçou o projeto de uma cidade às margens do Rio Ticino, no norte da Itália, com ruas largas, banhadas por luz natural e monitoramento do ciclo hidrológico para conter inundações. Avançada demais para a época renascentista, como muitas de suas ideias, a proposta ganharia nova forma já nos tempos modernos, quando finalmente os governantes perceberam que só metrópoles limpas e saudáveis romperiam a sequência de epidemias mortais. Grandes reformas nos séculos XIX e XX resultaram no traçado amplo das avenidas parisienses, que inspiraram o prefeito carioca Pereira Passos e o sanitarista Oswaldo Cruz a replicar o modelo no Rio de Janeiro. São mostras de como a história das cidades se confunde com a das epidemias, e não será diferente com a Covid-19, o novo flagelo da humanidade.

Embora as aglomerações sejam, mais uma vez, as vilãs da propagação do novo coronavírus, e por causa disso um terço da população planetária tenha sido obrigado a se isolar em casa, depois que o surto passar a planta que aglutina muitos prédios colados uns nos outros (e transbordando de gente) deve continuar prevalecendo nas metrópoles, por motivos práticos. “O ajuntamento otimiza os gastos públicos, facilita o deslocamento e amplifica as interações. É inclusive mais sustentável, ao potencializar o uso dos recursos naturais”, explica Leandro Medrano, professor de história da arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP). “Mas a forma de adensamento vai mudar, com novos mecanismos de distanciamento”, prevê. A expectativa dos urbanistas é que algumas armas contra o vírus tenham vindo para ficar, entre elas as portas só de entrada e só de saída em locais públicos, as divisórias de acrílico nos comércios, as mesas mais separadas nos restaurantes e, em geral, os protocolos mais rigorosos de limpeza.

No transporte, a perda de espaço dos carros e o cuidado para evitar lotação excessiva nos metrôs e ônibus são mudanças com tom definitivo, e vários projetos estão em andamento para estimular a população a andar a pé e de bicicleta. Milão, no norte da Itália, a primeira grande cidade do Ocidente a fechar sob o peso do contágio, vai transformar 35 quilômetros de ruas em vias exclusivas para ciclistas e pedestres. Além de conter aglomerações, o projeto Ruas Abertas também espera proteger o meio ambiente — 80% das mortes pela Covid-19 ocorrem nas regiões mais poluídas do mundo. Os ciclistas já estão fazendo a festa em Bogotá, capital da Colômbia — um caso de sucesso na América Latina no combate à pandemia —, onde a rede de mais de 35 quilômetros de ciclovias passou a operar todos os dias da semana, em vez de só aos domingos, e assim permanecerá.

ASSINE VEJA

Coronavírus: ninguém está imune
Coronavírus: ninguém está imune Como a pandemia afeta crianças e adolescentes, a delação que ameaça Witzel e mais. Leia na edição da semana ()
Clique e Assine

Prioridade à bicicleta está nos planos, em franco andamento, de 134 cidades da Alemanha, entre elas a capital, Berlim. Na histórica Filadélfia, principal cidade da Pensilvânia, no leste dos Estados Unidos, a população encaminhou uma petição em favor da criação de mais espaços livres para a circulação de pedestres e ciclistas, estimulada pelo aumento de 150% no uso de bicicletas nestes últimos meses. Ali perto, em Nova York, epicentro inicial da epidemia americana e até pouco tempo atrás firme defensora da primazia dos automóveis, toma forma um projeto de expansão de 160 quilômetros de ciclovias. Em Viena, conhecida pelos belos parques onde a flexibilização da quarentena já permite caminhar, o prestigiado Studio Precht apresentou à prefeitura um projeto inédito, o Parc De La Distance (em francês, para homenagear Versalhes), feito para ser apreciado sozinho, ou no máximo de dois em dois. Trata-se de corredores delimitados por cercas vivas no estilo labirinto (visto do alto, o parque lembra uma impressão digital) que impõem quase 1 metro de distância entre as pessoas que circulam por eles. Em Paris, por sua vez, a iniciativa Cidade 15 Minutos, da prefeita Anne Hidalgo, tem por objetivo motivar os parisienses a fazer a pé seus percursos diários por ruas fechadas a carros e eliminar o uso de veículos motorizados em trajetos de até 5 quilômetros.

Continua após a publicidade

O distanciamento social na pandemia também acelerou processos que já estavam em andamento, como o trabalho em sistema de home office. Mais profissionais vão adotá-lo definitivamente — o Twitter já avisou que liberará o trabalho remoto permanente para todos os funcionários que assim preferirem. Com isso, os especialistas antecipam menos espaço para escritórios e, no lugar deles, o surgimento de novos bairros com cafés que oferecem internet, locais de coworking, restaurantes e parques. Da mesma forma, a opção por compras on-line deve se solidificar e encolher as áreas de comércio. “Centros de varejo vão virar zonas residenciais. E quando a crise acabar se prevê um boom de bares e restaurantes. Uma lição que a Covid-19 nos deixa é que esses lugares são essenciais para o convívio social”, diz William Fulton, diretor do Instituto Kinder de Pesquisa Urbana, no Texas.

Nas moradias, a ventilação deve ganhar lugar de destaque — algo parecido com a maneira como os sanatórios ascéticos para tratamento de tuberculose na Europa do século XIX inspiraram a arquitetura modernista, com paredes brancas e muito vidro para ensolarar ambientes. “Saúde e bem-estar eram quesitos usados para diferenciar projetos de moradias. Agora eles serão imprescindíveis”, afirma Joanna Frank, presidente e CEO da empresa americana Center for Active Design, responsável pelo certificado Fitwel, referência internacional de prédios saudáveis. A casa pós-pandemia, diz ela, terá claraboias, janelas grandes, terraços, varandas e pátios para exercícios físicos e meditação. No Brasil, onde quase 15 milhões de pessoas vivem em moradias precárias, segundo o instituto Data Favela, a distância entre casas e apartamentos bem ventilados e a realidade é imensa, mas o drama da Covid-19 escancara a urgência de políticas que deem fim aos ajuntamentos humanos precários. “Cidades resilientes são aquelas com capacidade para se planejar e mitigar desastres”, explica Steven Pedigo, diretor do laboratório de pesquisa de urbanismo Urban Lab, da Universidade do Texas. Em outras palavras: novas pandemias virão e esta é a chance de se preparar para elas.

Publicado em VEJA de 27 de maio de 2020, edição nº 2688

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (menos de R$10 por revista)

a partir de 39,96/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.