China: os dilemas políticos no conflito entre tradição e modernidade
Xi Jinping esbanja poder no exterior enquanto, em casa, exalta o nacionalismo. Mas os jovens querem mesmo é andar de skate e jogar videogame
O palco global das recepções protocolares, onde chefes de Estado manifestam intenções políticas por meio de gestos e falas milimetricamente planejadas, exibiu, poucos dias antes da visita do presidente Lula a Pequim e Xangai, uma das mais emblemáticas coreografias dos últimos tempos. Coberto de honrarias e salamaleques, o presidente chinês Xi Jinping, rival declarado dos Estados Unidos no embate pelo predomínio mundial, foi recebido no Kremlin pelo colega russo Vladimir Putin, inimigo número 1 do governo americano desde que, indo contra tudo e todos, invadiu a Ucrânia há um ano. No lugar da mesa de 20 metros que o separava de visitantes menos desejáveis durante a pandemia, Putin recebeu Xi com um caloroso aperto de mão, seguido de conversa ao pé da lareira, em poltronas juntinhas uma da outra. Bate-papo encerrado, levou o hóspede até o carro, uma rara gentileza, e à noite o homenageou com uma recepção de gala. O balé de poderosos foi um trunfo para o dirigente russo, ao sinalizar que ele não está totalmente isolado pelas sanções e o repúdio de boa parte do mundo, e conta com um amigo peso-pesado. A estrela da festa, contudo, foi Xi — nunca antes ficou tão explícito seu papel no topo da cadeia de poder planetária.
O presidente chinês, para todos os efeitos, não foi a Moscou apoiar Putin, mas, sim, apresentar uma proposta de doze pontos com vistas a um cessar-fogo e uma saída negociada para a guerra na Ucrânia. Como até o corpo embalsamado de Lenin sabe, trata-se de uma canoa furada — Kiev não aceita discussão até que a Rússia se retire da fatia de território ucraniano que ocupa atualmente, uma questão que o documento não prevê. O encontro, no entanto, teve o efeito prático de alinhavar uma ativa cooperação econômica entre os dois países em um cenário internacional adverso. Estão em andamento tratativas para a construção de um novo gasoduto através da Sibéria e Mongólia para descarregar gás natural russo no nordeste da China, a preços convidativos, garantindo geração de eletricidade de um lado e boas receitas de outro. A China também aventa a possibilidade de transferir fábricas de seus produtos para a Rússia.
O aperto de mão no Kremlin e outras iniciativas recentes de Pequim — que há duas semanas driblou a diplomacia americana no Oriente Médio e patrocinou um tratado de paz histórico entre a Arábia Saudita e o Irã, aumentando consideravelmente sua influência na região — representam uma mudança radical na política externa da China. Por décadas o país seguiu a estratégia desenhada por Deng Xiaoping, o mandachuva de 1978 a 1992, de “esconder o jogo e ganhar tempo” no cenário internacional, sempre atuando nos bastidores e evitando aparecer. Agora que ficou grande demais para passar despercebido, o país abraçou a diplomacia muito mais incisiva do Lobo Guerreiro, nome de uma franquia de filmes de ação em que uma espécie de Rambo oriental combate ameaças externas, sucesso estrondoso no país. É com essa China pragmática e assertiva, um lobo guerreiro, que Lula pretende firmar alianças e, se possível, pegar carona em iniciativas de maior protagonismo mundial — como a busca da paz na Ucrânia.
Por mais que enxergue o Ocidente como um território a ser desbravado — e cooptado —, o governo chinês trilha com cautela seu caminho na zona de influência americana e encara os países ricos dessa metade do mundo, Estados Unidos à frente, como um bloco empenhado em criar crises para enfraquecer a China e manter sua hegemonia. Entra nessa interpretação a Ilha de Taiwan, a 131 quilômetros da costa, que abrigou os nacionalistas derrotados pela revolução comunista em 1949 e age como país independente. A retomada do território é ponto de honra de Pequim, mas contraria os interesses da Casa Branca, ainda mais porque Taiwan domina a tecnologia dos chips usados na indústria mundial, responsável pela produção de 90% dos modelos mais avançados. “Para os Estados Unidos, Taiwan é um instrumento para conter a China, mas os custos de um conflito aberto seriam altos demais”, diz Tang Xiaoyang, professor de relações internacionais da Universidade Tsinghua.
Enquanto se abre para o mundo, o governo de Xi pratica internamente um nacionalismo exacerbado e intenso controle social. Os doze canais de televisão da estatal CCTV exibem novelas e seriados que ora celebram o passado glorioso e a tradição milenar chinesa, ora exaltam a revolução comunista. Nas ruas, milhões de câmeras equipadas com programas de identificação facial monitoram cada centímetro das áreas públicas. O acesso a pontos sensíveis, como a Praça da Paz Celestial, em Pequim, onde centenas de pessoas foram mortas durante protestos por mais liberdade em 1989, é controlado por policiais, cercas e detectores de metal e sujeito a identificação. Ao apresentar o passaporte com visto de jornalista, a reportagem de VEJA foi impedida de entrar na praça, sem explicações. “Há dez anos, o cenário era completamente diferente, Pequim estava na vanguarda da Ásia. Hoje, nada de diferente pode florescer”, reclama um ex-produtor cultural que investia na cena alternativa da capital, mas abandonou a atividade depois que os artistas com quem se relacionava receberam ameaças.
A exaltação nacionalista de Xi Jinping, a quem os altos executivos erguem uma espécie de altar em seus gabinetes com fotos e homenagens, prevalece. Por ordem dele, a economia da prosperidade, alicerce do crescimento acelerado e base do salto chinês, amarra-se agora ao ideal de uma China grandiosa e fortalecida. O Partido Comunista batizou de “rejuvenescimento” a nova fase em que o enriquecimento deve vir acompanhado do propósito maior de servir ao país.
Uma volta pelos bairros centrais de Pequim e Xangai, no entanto, mostra que a juventude, propriamente, torce o nariz para o “rejuvenescimento”. A primeira geração de chineses que nasceu rica gosta de roupas de grifes ocidentais e escuta música americana. As meninas parecem saídas de um mangá, com saias curtas, meia colegial e tiara com orelhas de gatinho. Os meninos são aficionados por videogames, desenhos animados e bonequinhos de personagens — a ponto de Xangai ter um shopping inteiro só para eles. Cabelos coloridos são comuns, o skate é um esporte cada vez mais praticado e as redes sociais atraem enorme atenção.
Xi considera que esse apreço por “frivolidades” pode comprometer o futuro glorioso e vem tomando suas providências. O ensino de inglês tem menos espaço nas escolas públicas e novas leis limitam o tempo que as crianças dedicam a games. Já os “pensamentos sobre o socialismo com características chinesas para uma nova era” do líder máximo, reunidos em livro, são estudados em sala de aula e difundidos por meio de um dos aplicativo mais baixados no país. “O partido chinês está ciente do perigo de as pessoas se organizarem e de como isso pode representar uma ameaça”, alerta Anna Kwok, diretora do Hong Kong Democracy Council, uma das raras organizações que confrontam o regime.
Outro desafio do governo é reverter o encolhimento da população. A revogação da política de filho único, em 2015, não foi capaz de elevar a taxa de fertilidade a 2,1 filhos por casal, número necessário para a população se manter estável. No ano passado, a quantidade de nascimentos foi a mais baixa da história, e a China encolheu em 850 000 habitantes. Agora é Pequim que assinala a primeira queda de população em duas décadas, anunciada na semana passada. Com uma irreversível mudança de aspirações, a ajuda financeira oferecida aos casais para ter mais filhos não surte o efeito esperado, o que pode afetar, no médio prazo, a oferta de mão de obra — força motriz do desenvolvimento chinês. Problemas não faltam, mas a China é a China e o mundo inteiro está de olho nela.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2023, edição nº 2834