Os 2 milhões de doses da vacina contra a Covid-19 desenvolvida pela Universidade de Oxford em parceria com o laboratório AstraZeneca entregues ao Brasil viajaram quase 15 000 quilômetros até o Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Sua origem foi o Serum Institute (SII), o maior laboratório dedicado exclusivamente à produção de imunobiológicos do mundo, localizado na Índia. O instituto, de onde devem vir mais 10 milhões de doses em fevereiro, foi um dos primeiros a começar a produção dos imunizantes, quando os testes ainda estavam em fase inicial. O estoque poderoso que acumulou com essa aposta agora impulsiona a maior de todas as campanhas de vacinação, cujo alvo é imunizar 1,38 bilhão de indianos — a segunda maior população do planeta, atrás apenas do 1,44 bilhão da China. Uma empreitada monumental, mas viável na nação que concorre com os chineses e já abastece os quatro cantos da Terra de medicamentos para combater o vírus, de genéricos em geral e, agora, das vacinas que traduzem a esperança de fim da pandemia.
Como era de esperar em um terreno científico que virou campo de batalha política, o ambicioso primeiro-ministro indiano Narendra Modi, adepto de um nacionalismo radical e de um populismo muito em moda, vem utilizando a venda e doação de doses para formar alianças e reforçar sua influência interna e externa. Com a China, maior rival da Índia pela hegemonia regional, na sua porta e atiçando escaramuças em pontos isolados da fronteira, Modi tratou de assegurar uma posição de liderança ao oferecer 20 milhões de doses gratuitas da AstraZeneca-Oxford a nove vizinhos mais pobres — generosidade que, por um momento, pareceu ameaçar o fornecimento ao Brasil. Além do contrato com o Ministério da Saúde brasileiro, Nova Délhi acertou com Marrocos, África do Sul e Emirados Árabes Unidos a exportação das vacinas a preços mais baixos do que os oferecidos pelos laboratórios europeus, expandindo como nunca seu círculo de amizades externas. “Modi se identifica com a política direitista de Jair Bolsonaro”, avalia Prerna Singh, professora de relações internacionais da Universidade Brown, muito embora as relações tenham sido afetadas por divergências recentes em questões comerciais.
Nadando em popularidade graças a quatro anos de consistente crescimento econômico, Modi foi reeleito por ampla margem em 2019 e viu aí a chance de fechar de vez o cerco ultranacionalista e a celebração do hinduísmo, reprimindo sem disfarce as demais religiões, sobretudo a muçulmana. A pandemia foi um baque a suas ambições, ao paralisar a economia, abolir empregos e forçar milhões a voltar para a empobrecida zona rural. A negação da gravidade da crise também fez o número de casos confirmados e de mortes explodir. Após um pico em setembro, a Índia superou o Brasil como o segundo país com mais casos da doença, atrás apenas dos Estados Unidos.
A vacinação agora é uma arma para o governo restaurar seu apoio popular — 2,3 milhões já foram imunizados até a quarta 27, e a meta é chegar a 300 milhões nas próximas semanas. Para isso, foram acionados os recursos da poderosa indústria farmacêutica nacional, responsável pela produção de 60% dos imunizantes administrados globalmente e por 20% das exportações de remédios genéricos no planeta. “A Índia não reconhecia patentes de medicamentos até a década de 70, o que facilitou o desenvolvimento de uma indústria de fármacos a preços baixos”, diz o economista Arvind Panagariya, professor da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Modi também pressionou a agência regulatória nacional a aprovar a primeira vacina 100% indiana, desenvolvida pelo laboratório Bharat Biotech, antes mesmo da conclusão da última fase de testes. “Exaltar o potencial científico nacional faz parte do plano de governo para expandir laços diplomáticos”, diz Prerna Singh.
Mesmo com o alto grau de desenvolvimento em setores de ponta, como tecnologia e medicina, as desigualdades sociais indianas continuam imensas. Uma amostra dessa distorção é o protesto que agricultores realizam há dois meses nas imediações da capital, Nova Délhi, e que na terça-feira 26, quando se comemora a independência da Índia, descambou em tumulto, depredações e um morto. Cerca de 60% dos indianos ainda vivem da agricultura, embora ela represente menos de 15% do PIB. Um projeto do governo de retirar subsídios e abrir o setor à iniciativa privada revoltou os pequenos produtores, que veem aí uma ameaça de ser engolidos pelas grandes multinacionais. Cerca de 50 000 montaram um enorme acampamento e nele permanecem, em sistema de revezamento, rejeitando todas as propostas e exigindo a anulação total do projeto. Em um país onde o governo conseguiu anular toda e qualquer oposição, o movimento ganhou amplo apoio da população — dando lugar a rumores de que o próprio governo estimulou o quebra-quebra do Dia da Independência para enfraquecê-lo. Com mais de 1 bilhão de habitantes e a sociedade dividida em castas, religiões e ressentimentos, a “farmácia do mundo” está sempre sujeita a convulsões.
Publicado em VEJA de 3 de fevereiro de 2021, edição nº 2723