Como e por que Trump ataca os tribunais internacionais?
Presidente americano colocou a América em primeiro lugar e combateu o multilateralismo. Estratégia pode levá-lo a reeleição ou isolar EUA do resto do mundo
Os tribunais internacionais nasceram após a Segunda Guerra Mundial, na esteira da criação da Organização das Nações Unidas (ONU). Para o processo de paz dar certo, entendeu-se que seria necessário promover relações multilaterais entre os países – em conselhos onde os conflitos pudessem ser analisados e discutidos por várias nações. O sistema nunca foi perfeito e inúmeras guerras regionais aconteceram desde então. Mas a chegada de Donald Trump ao poder significou um golpe duro no modelo multilateral.
Na última semana, Trump impôs sanções econômicas e estendeu a proibição de vistos para membros do Tribunal Penal Internacional (TPI) . As medidas foram tomadas após a corte ter anunciado que irá abrir uma investigação sobre os crimes contra a humanidade que os Estados Unidos poderiam ter cometido durante a Guerra do Afeganistão, entre os anos de 2003 e 2014. O TPI acusa o exército americano e a CIA de serem responsáveis por mais de 88 casos de tortura e estupro em prisões do país asiático. Em resposta, a Casa Branca acusou o TPI de ser partidário. “Estamos preocupados porque nações adversárias estão manipulando e encorajando essas acusações no Tribunal Penal Internacional contra os Estados Unidos”, declarou o governo em nota.
As acusações levaram a uma onda de indignação. O Tribunal reiterou a imparcialidade e classificou as sanções econômicas como “sem precedentes”. “Um ataque contra o TPI também representa um ataque contra os interesses das vítimas de crimes de atrocidade, que para muitas delas o Tribunal representa a última esperança de justiça”, afirma a nota.
Já o representante da França na ONU, o embaixador Nicolas de Rivière, reafirmou o apoio do país à Corte. Alemanha, Suíça, Irlanda, Bélgica e Áustria seguiram na mesma linha. Até o ministro das Relações Exteriores do Reino Unido, principal aliado dos Estados Unidos, Dominic Raab, afirmou que o país “apoia fortemente o papel do Tribunal Penal Internacional em acabar com a impunidade”, mas se posicionou favoravelmente à uma reforma do Tribunal, um ponto defendido por Trump.
Desde que chegou à Casa Branca, Trump não perdeu oportunidade de atacar as instituições que o próprio Estados Unidos ajudaram a criar no passado. Argumentando que o país estava atado às regras de instituições internacionais que não o beneficiavam, o presidente americano promoveu ações para esvaziar o papel de diversos tribunais internacionais. Os trabalhos da Organização Mundial do Comércio (OMC) estão praticamente paralisados porque os Estados Unidos não indicaram novos juízes ao órgão de apelação. Para o governo americano, o órgão atende demais os interesses da China e de países em desenvolvimento, com economias menos potentes.
Já o Conselho de Direitos Humanos da ONU foi acusado pelo presidente americano de realizar uma “campanha patológica contra Israel”. O EUA votaram contra uma resolução que condenava a violência israelense contra manifestantes palestinos, em Gaza. Apenas a Austrália acompanhou o voto nesse caso. A Casa Branca decidiu, então, boicotar o órgão e retirar sua representação do Conselho, após tentativas fracassadas de reestruturação propostas pelos americanos.
Decisão semelhante ocorreu na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (Unesco), quando o comissário Zeid Ra’ad al-Hussein disse ser “inadimissível” os Estados Unidos separarem famílias de imigrantes na fronteira com o México.
Mais recentemente, Trump apontou sua fúria para a Organização Mundial da Saúde e retirou o financiamento anual de 500 milhões de dólares, depois de acusar a OMS de agir movida pelos interesses da China, no combate à pandemia de Covid-19.
Jogo Duro
Negociador do mercado imobiliário americano, o mais voraz do mundo, Trump fez fama e fortuna com programas de televisão sobre como ganhar dinheiro. Sua ação como presidente remete ao slogan da campanha e ao enfoque das políticas de seu governo: “América em Primeiro Lugar”. Talvez isso ajude a explicar porque ele não enxerga no multilateralismo uma oportunidade de ganhos mútuos.
O presidente americano vê o mundo como um jogo de soma zero, no qual os Estados Unidos devem sair ganhando de todas as negociações, sem se dobrar às exigências de outros países. Assim, o NAFTA – Acordo de Livre Comércio da América do Norte, envolvendo Estados Unidos, México e Canadá – foi renegociado. Já o Acordo de Paris, em torno do aquecimento global, e o acordo Nuclear com o Irã foram abandonados de forma unilateral. O último levou a uma escalada de tensões que quase desembocou num conflito armado entre os dois países.
“Ele prometeu a seus apoiadores que colocaria os interesses dos Estados Unidos em primeiro lugar, e argumentou que as alianças e acordos internacionais não faziam isso”, diz Robert Saphiro, professor de ciências políticas da Universidade de Columbia.
Para a professora da escola de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Carolina Moehlecke, os ganhos a curto prazo da política isolacionista de Trump é a eleitoral. “Essa estratégia isolacionista responde a um eleitorado que perdeu com a globalização, que gerou ganhadores e perdedores”, afirma.
Enquanto Trump mantém os Estados Unidos longe das cortes internacionais, outras nações, principalmente da periferia do mundo, enfrentam processos graves. No dia 9 de julho, o sudanês Ali Kosheib, acusado de 50 crimes contra a humanidade, se entregou à missão de paz das Nações Unidas na República Centro Africana e será julgado pelo TPI. Kosheib liderou milícias, em Darfur, que queimaram casas de civis e mataram pessoas indiscriminadamente nas ruas. O sudanês também comandava partes do Exército do Sudão e a polícia do país.
Se for justamente condenado, mostrará a importância de um tribunal cuja espada não consegue atingir o país mais poderoso do mundo e seu controverso presidente.