Na Flórida, destino preferencial dos brasileiros no exterior, um cabo de guerra vem opondo o governo à empresa que mais emprega (80 000 pessoas) no estado, a Walt Disney Company. De um lado da corda está Ron DeSantis, o governador republicano que acaba de assinar uma lei proibindo qualquer menção a questões de sexo e gênero nas escolas até o fim da 3ª série. Do outro, Bob Chapek, CEO da Disney, que assumiu a linha de frente da oposição à legislação. O embate traduz bem os ânimos exaltados e o ímpeto da onda conservadora que engolfa e singulariza a Flórida desde a eleição de DeSantis, 43 anos, advogado que Donald Trump apadrinhou e ajudou a vencer em 2018. O pupilo não só aprendeu como aprimorou as táticas trumpistas. No processo, tornou-se um sério rival do mentor na indicação republicana para a Casa Branca em 2024.
O maior talento de DeSantis é mobilizar os cidadãos comuns em torno de temas de fácil assimilação. Segundo ele, a nova lei, apelidada pelos detratores de “Não diga gay” (“Gay, gay, gay”, provocaram as apresentadoras do Oscar), permite que os pais “mandem as crianças para o jardim de infância sem ter essas coisas injetadas no currículo”. A aprovação do projeto na Câmara e no Senado estaduais provocou protestos e greves pontuais entre os funcionários da Disney, empresa que nasceu e cresceu conservadora, mas hoje abraça a proposta de ambiente de trabalho tolerante e diversificado. Chapek, a princípio, não reagiu. Mas quando apareceram as doações da empresa aos apoiadores da lei (só DeSantis recebeu 50 000 dólares nos últimos dois anos), ele saiu do silêncio: pediu desculpas pela demora em se pronunciar e, em um crescendo de condenações, disse esperar agora que a medida seja revogada pelos legisladores ou suspensa pela Justiça. DeSantis, em troca, ameaça retirar da Disney a permissão de manter uma espécie de governo próprio nos arredores de seu parque. A briga ocorre justo quando a Disney se prepara para transferir da Califórnia para a Flórida o QG de suas operações.
A guerra cultural em andamento na Flórida tem na mira, além das comunidades LGBTQIA+, as feministas, os imigrantes ilegais, o aborto e qualquer bandeira progressista sob o guarda-chuva do woke, o movimento radical contra discriminação, preconceito e injustiças sociais. Em janeiro, funcionários da Secretaria de Educação, a pedido dos pais, percorreram escolas no interior do estado removendo da biblioteca livros “impróprios” — até o best-seller O Caçador de Pipas entrou no índex. Uma outra lei da lavra de DeSantis é a Stop Woke (aí, uma sigla em inglês para “injustiças contra nossas crianças e nossos trabalhadores”). “Não vamos permitir que os impostos da Flórida sejam gastos ensinando os alunos a odiar seu país e uns aos outros”, proclamou o governador. A intromissão do governo no currículo escolar se estende ao racismo, outro tema que se pretende banir sob a justificativa de que os estudantes de hoje não devem se sentir culpados por erros do passado. “São disputas que despertam atenção na mídia nacional e projetam seu nome”, diz Jim Clark, historiador da Universidade da Flórida Central.
O populismo conservador de DeSantis saltou aos olhos durante a pandemia, quando ele se recusou a impor o uso obrigatório de máscaras e manteve escolas e negócios funcionando. Até hoje, só 65% da população se vacinou e o próprio governador não revela se está ou não imunizado. Com as portas abertas e a economia em marcha acelerada, 220 000 americanos se mudaram para o estado durante a pandemia, um recorde nacional. Formado em Yale e Harvard, com passagem pelo departamento jurídico da Marinha e aparições em debates na Fox News, DeSantis colocou a estridência em prol da carreira política e tem sido bem-sucedido. Tradicional swing state, que ora pende para republicanos, ora para democratas, e nesta condição foi o voto definidor em seis das sete últimas eleições, a Flórida, pela primeira vez, tem uma maioria perante os democratas de mais de 100 000 republicanos registrados para votar. A luta de DeSantis neste ano é pela reeleição, que parece garantida. “Ele é, para muitos, a encarnação de Donald Trump na Flórida, uma espécie de sucessor”, diz Darryl Paulson, da Universidade do Sul da Flórida. O criador, enquanto isso, trata de se despregar da criação: recentemente, Trump chamou de “covarde” quem não revela se tomou vacina e, nos discursos em convenções partidárias, um deixou de citar o outro. Essa briga promete.
Publicado em VEJA de 13 de abril de 2022, edição nº 2784